DIÁRIO NATALINO E SUAS FANTASIAS

Belém do Pará, centro, dez horas da manhã. Dois meninos negros, com uma vara de bambu de mais de cinco metros, colhem mangas verdes em plena via pública, entre os carros que circulam num trânsito frenético.

Dona Poesia me visita (num rasgo tristonho) nesta manhã quente de luz e turvas águas a perder de vista, antevéspera de Natal. Altemar Dutra, o cantor, comove às lágrimas. Atenta, a cabeça acompanha a melodia e a voz, no drama tão irrepreensível do amar.

Voeja-se no giro das lembranças. Cuidadoso para com o canto seco da poesia, o alter ego tenta a fuga do lugar comum da vida e a alma esconde a lágrima furtiva. O poeta curte a solidão sob a copa das esperas.

É frondosa a árvore do mutismo. Começa a balbuciar signos desconexos. Mesmo batendo forte, é doce o dia de amanhã. Não há indícios de intempéries. É sempre dulçuroso quando o coração se permite ouvir o cântico não imediato.

É quase Natal. Há no ar o gorjeio de um pássaro qualquer. Ele, tal qual o poeta, pousa no ramo frágil. Espadana-se, talvez com medo de cair. Asas abertas, ele abre o bico e emite o canto. De esguelha, a poesia registra o medo nos olhinhos. O temor de estar-não-estar amedronta.

Onde somos nós mesmos? E eu, aqui, temeroso, sou eu mesmo? Afinal, quando somos nós mesmos? Os rituais compensatórios calibram nossas artérias.

É preciso fortaleza para sonhar o Belo, porque o Real é indomável, duríssimo. O povo morre estirado nas calçadas, ventre vazio. Nos leitos absurdos das rodovias, perambulam sem destino. Nós, escribas, morremos na impotência de mudar o mundo.

Creio na Poesia como o bálsamo, o lenitivo para a dor fundeada no mar derradeiro das esperas, absoluto. A gente morre um pouco a cada dia, a cada ano, porque o mundo é ácido para quem tem consciência de estar submerso no duro calvário de estar vivo.

A Arte nos completa. É o autoflagelo indissolúvel. Recriamos o que está decomposto. O mundo é imperioso. É da ordem das coisas o necessário andar, mesmo que com pernas trôpegas. Andar, deambular por aqui e por ali é o determinismo para quem está pretensamente lúcido, útil, vivo de energias.

Para o poeta que me habita, por vezes, é urgente um gole de vinho tinto seco, de preferência o cabernet sauvignon. O agridoce não vem das papilas gustativas, e, sim, do amortecimento da capacidade censora, a impositiva libação das clausuras.

O coração está vivo, batendo, batendo. Amor tem gosto de vinho. E nem se diga de que nada adianta dormir sozinho. O beijo no cálice tem gosto de uvas mastigadas.

Talvez o sono recrie o amanhã. O dia seguinte. A própria esperança. Que o Natal seja verdade, tal como se diz nas igrejas e na mídia consumista. Hosanas ao canto triste. A alma balbucia o poema. Mais tarde, o pássaro cantor se entregará ao sol poente. Dormirá sob a copa das árvores.

A tarde geme todos os dias sua decadência. O lusco-fusco mascara gemidos. O pobre pássaro do poeta é a garatuja sobre o papel. Maluca, esta lavratura nunca tem início nem final. Mascara-se à procura de quem lhe possa devolver a vida. Completá-la. Adiar a passagem pra outra margem.

Terá o passarinho a determinística função de dourar-se ao sol e adoçar os bagos de uva para possibilitar o vinho? E a etílica trava na língua arria-se sobre o gesto gráfico. Abafa o brado incontido que não quer calar.

A chuva desce fina sobre o Natal. A estrela aponta Belém. O canto sórdido é um balbuciar gutural de lágrimas. O poeta canta a si próprio. O universo cresce dentro dele numa flor amarga.

Mas a Beleza está posta como uma lápide sem epígrafe. Não há nenhum símbolo gráfico, sequer inscrição inteligível. O autor coloca o ponto final. Uma cruz de pedra. Cala-se a voz.

A natureza humana nos consola. Permanece o melhor de tudo: o amor à Vida. E a Esperança. Decerto os meninos da mangueira comerão seus frutos na ceia natalina.

Está chegando o fetiche do Natal com suas fantasias. Papai Noel, ainda não nascido, ressona sem barba e vestimenta. E o suor cobre por inteiro o corpo do caboclo.

A estrela Vésper brilha, tímida, por trás de um edifício muito alto, que lembra Frankenstein e sua cara costurada.

– Do livro CONFESSIONÁRIO - Diálogos entre a Prosa e a Poesia, 2006. http://www.recantodasletras.com.br/cronicas/90059