A Garota Enjoada
Às sete da manhã pôs os pés no chão.
Esticou-se como uma felina após um longo descanso e bocejou o ar divino dos mortais. Sonolenta, olhou-se no espelho: seu rosto era o mesmo. Seus olhos eram os mesmos. Seu cabelo tinha a mesma cor de sempre. Nada mudara a volta.
A mesma vida soprou-lhes as ventas o mesmo sopro cotidiano. Precisava levantar, se despir e vestir-se: a vida lhe esperava lá fora.
Tomou café como todos os dias: algumas frutas, chá (pôs enjoara o cheiro de café), um pão amanteigado que já lhe enjoava só de olhar: aquela cor sem-cor de cor clara...
- Toda manhã a mesma mesmice... Sussurrou sem perceber que alguém ouvia.
Tomou a condução.
Com o pé direito pisou os degraus do prédio em que trabalhava há alguns meses – acreditava em superstições, apesar de já ter enjoado os métodos espirituais de várias religiões.
- Bom dia Ana, bom dia Luiza, bom dia Lucas, bom dia...
O mesmo trajeto foi cumprido milésimo por milésimo de centímetro até sentar-se na confortável cadeira da tortura regular de todo santo dia útil.
Uma bossa de fundo pôs pra tocar (a mesma de sempre. Aliás, admira-me que de tantos atos e gestos enjoados ao longo de seus vinte dois anos de idade, a música tenha sido a única coisa que não lhe enjoou. Entre seu repertório estavam bossas e alguns rock’s clássicos. Beatles era seu próprio sangue).
Antes de cumprir sua via crucis de documentos e valores digitais, observou atentamente a letra W do programa Word. O azul do ícone lhe enjoou.
Dois clics e uma página em branco.
Rabiscou versos-espelhos que lhe traduziam o momento, o segundo que vivia:
“TO BE OR NOT TO BE?
A garota enjoada
enjoa comida
enjoa rotina
enjoa os próprios vícios
enjoa cabelo
enjoa fotos
enjoa pessoas
e enjoa de si mesma!”.
Olhou a parede. O mesmo tic tac do relógio dava-lhe nos nervos. Mandou tirá-lo. Mandou o tempo pra rua.
12 horas. Hora de almoço.
Os mesmos alimentos a mesa. A mesma mastigação seguida por alguns minutos. O mesmo líquido doce tocando os lábios e descendo garganta abaixo.
O gosto enjoou-lhe. Os restos dos sentidos também... – menos a audição, é claro.
Tarde-mesmice caiu-lhe a frente enjoando-lhe os olhos cansados do vazio mundano.
- Talvez Cecília me liberte...
“Eu não tinha este rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro,
nem estes olhos tão vazios,
nem o lábio amargo.
Eu não tinha estas mãos sem força,
tão paradas e frias e mortas;
eu não tinha este coração
que nem se mostra.
Eu não dei por esta mudança,
tão simples, tão certa, tão fácil:
— Em que espelho ficou perdida
a minha face?”
Enganou-se...
Enjoou os versos.
Cumprindo o mesmo trajeto de todos os dias (enjoados como sempre) chegou à faculdade.
Na aula ninguém lhe desafiou a um combate verbal.
Ninguém lhe desafiava, visto que sua língua era digna de comparação com a mais cortante espada samurai, afinal transpirava saber devido ao vício compulsivo de mais e mais leitura.
Fim de aula.
Enjoando o trajeto do elevador, desceu o andar observando os rostos a volta.
Condução...
Retornou ao castelo não-encantado (talvez um pouco pela sobrinha que lhe tirava sorrisos e gargalhadas).
Despiu-se. Banhou-se e esticou-se como felina.
Sentou-se em frente ao PC. Navegou mares comuns e incomuns como de costume nas noites de tédio. Enjoou.
Deitou na cama. Olhou o relógio...
Tic tac tic tac...
O sono lhe veio beijar a testa. Lentamente os olhos fecharam-se e o silêncio soou ao fundo.
Não há tédio. Não há elevadores e via crucis cotidianas. O enjôo deu lugar a um novo-antigo som...
“Help, i need somebody,
Help, not just anybody,
Help, you know I need someone, help...”
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Poesia: Heliana Valois (To be or not to be) - A quem dedico esta crônica.
Citação Poética: Cecília Meirelles (Retrato).
Citação musical: The Beatles (Help)