Jericoacoara
A bexiga já lhe doía de tão cheia, mas o banheiro minúsculo, imundo e cuja porta precisava ser apoiada com um pé para que seu ocupante tivesse o mínimo de privacidade não lhe parecia um enterro decente à nobre cerveja que vinha consumindo nas últimas horas. Então, ela levantou-se cambaleante e foi até o mar, onde, nas águas aquecidas do Ceará, pode, finalmente, aliviar-se.
Ficou ali parada, mergulhada até a cintura, fazendo marolas, apenas para disfarçar o verdadeiro motivo de seu mergulho, embora não estivesse muito certa de não tê-lo anunciado a todos à mesa quando se levantou. Também, não se importava muito. Eram todos amigos e já estavam acostumados com seu jeito meio escrachado.
Neste instante, aproximou-se o pescador, que lhe perguntou se não desejavam fazer um passeio de barco nas praias próximas. De fato, não. Mas, na véspera estavam se lamentando por não poderem ir até Nova Tatajuba, um vilarejo inexplorado que, por terra, exigiria uma caminhada de pelo menos quatro horas. Ninguém, no grupo estava assim, tão em forma. Antevendo a oportunidade de ganhar algum dinheiro dos turistas, o pescador fez o preço do passeio e ela voltou com ele até o bar, onde a sugestão da aventura foi aclamada com palmas e vivas.
Na manhã seguinte, muito cedo para aproveitarem a maré, estavam todos no barco, embora ainda ressaqueados. A viagem foi bem tranqüila e em pouco mais de uma hora, desembarcavam no vilarejo. No caminho até a casa onde ficariam hospedados ela viu caranguejos e os mostrou à Aline, a pessoa do grupo com quem mais partilhava gostos. A amiga esfregou as mãos com prazer, a boca salivando, antevendo os prazeres gastronômicos de mais tarde. Porém, o guia que as acompanhava garantiu que, sendo época de desova e reprodução, seria difícil conseguir exemplares dignos de ir à mesa, sem risco de um desfalque à natureza.
Chegando à vila, foram apresentados ao prefeito que era também o proprietário da pousada e o grupo foi dividido entre os poucos cômodos. Numa primeira olhada, os quartos pareciam enormes. Mas, bastava um segundo olhar para se observar que eles não possuíam móveis. Apenas ganchos nas paredes.
- Redes!! – indignou-se Aline, indicando uma pequena primeira divergência naquela amizade.
Em seguida, obtiveram as diretrizes e caminharam até a Lagoa Azul, bela, salobra e localizada 12 metros abaixo de onde estavam, o acesso possível apenas através de uma duna de areias muito fofas e quentes, que envolviam as pernas até os joelhos.
Para complicar, Eunice, temendo enjoar na travessia de barco, tomou um Dramin. Debaixo do sol escaldante, depois do banho nas águas mornas da lagoa, a pressão foi ao chão. E ela precisou ser literalmente carregada duna acima, pelos amigos que se alternavam na formação da cadeirinha.
Ao retornarem à pousada, exaustos e famintos, tiveram o prazer de se deparar com um banquete dos deuses e comeram como nababos, as iguarias uma a uma desaparecendo da mesa. Em seguida, foram repousar nas redes da varanda, enquanto ela e Aline, continuaram devorando, insaciáveis, os muitos caranguejos “de estralo” que ainda sobravam na enorme bacia. Ambas, glutonas, esqueceram-se de perguntar qual seria o impacto ambiental de seu enorme prazer.
Depois de mais um passeio e do belo pôr-do-sol, recolheram-se aos quartos.
Ela entrou em seu banheiro e deparou-se com um tonel cheio de água sobre o qual havia uma cumbuca. Lavou-se como pode com aquele equipamento tosco quando ouviu a voz de Aline, gritando do outro cômodo:
- Amiga, seu banheiro tem água?
- Tem!
E deu passagem à Aline, que chegou trazendo uma nécessaire com hilariantes xampu e condicionador. Esforçou-se para disfarçar o riso, esperando ouvir o grito da amiga:
- Você disse que seu banheiro tinha água!!
Todos caíram na gargalhada ao ver Aline saindo do quarto, furiosa, carregando a nécessaire lotada de cremes. A essa hora diante de tanto cansaço, as redes já pareciam até bastante confortáveis e convidativas. De madrugada foram acordados pelo pescador para o retorno.
Ao chegarem ao local de ancoramento da canoa, ele se deu conta de que errou algumas horas no cálculo da maré e foram obrigados e empurrá-la até a água, girando-a até vencerem a distância de cerca de 20 metros.
Se a ida havia sido tranqüila, com o barquinho à vela ganhando o alto-mar mas sempre mantendo a costa à vista, o mesmo não se pode dizer da volta. Com o vento contrário, ele precisou ziguezaguear todo o caminho. Em função da escuridão do horário, sem ter onde fixar os olhos, as pessoas no barco começaram a enjoar. Com as viradas da canoa em busca de um vento bom, ela começou a fazer água e o pescador distribuiu cacimbas, para que ajudassem a jogar a água pra fora. No início da manhã, conseguiram vislumbrar Jericoacoara, para novamente ver o barco afastar-se e aproximar-se, várias vezes, numa manobra enlouquecedora. A pobre holandesa, quase transparente de tanto enjôo, irritou-se com mais uma virada que os afastava novamente do destino e atirou longe sua cacimba, quase acertando o pescador.
Ela e Aline, as únicas que não estavam enjoadas, a essa hora começavam a sentir fome. E descreviam com detalhes o café que encontrariam na pousada quando desembarcassem:
- Ai, e aquele pão com manteiga, queijo, presunto...
- Ovo! Tanta manteiga que uma banda vai deslizar na outra... – completou, fazendo o gesto do deslizamento com as mãos.
Neste momento, Eunice, exangüe, sem forças sequer para falar, com um gesto, pediu silêncio às duas. Elas se olharam, sorriram e completaram, quase juntas:
- Hummm! E com maionese!!
Foi o suficiente para que todos os que ainda tinham alguma bílis no estômago jogassem tudo para fora de uma vez.
Ao desembarcarem pagaram pelo passeio e, quem pode, foi tomar o café na pousada. Os outros, recolheram-se aos seus quartos e só foram aparecendo horas mais tarde, para retomarem a bebedeira da antevéspera, apesar dos protestos da holandesa:
- yo tengo hambre, yo no tengo sede...
E se juravam nunca mais entrar numa dessas, sem perguntar mais detalhes sobre o passeio com antecedência, até que apareceu um sujeito sobre um garboso alazão, perguntando se não gostariam de conhecer as redondezas a cavalo, no próximo dia.
De fato, não, mas...
E este seria o começo de uma outra crônica, cuja cômica cena final seria ela pendurada de cabeça para baixo, tentando agarrar-se para não cair, durante o alegre trote de um pangaré mal encilhado...
A bexiga já lhe doía de tão cheia, mas o banheiro minúsculo, imundo e cuja porta precisava ser apoiada com um pé para que seu ocupante tivesse o mínimo de privacidade não lhe parecia um enterro decente à nobre cerveja que vinha consumindo nas últimas horas. Então, ela levantou-se cambaleante e foi até o mar, onde, nas águas aquecidas do Ceará, pode, finalmente, aliviar-se.
Ficou ali parada, mergulhada até a cintura, fazendo marolas, apenas para disfarçar o verdadeiro motivo de seu mergulho, embora não estivesse muito certa de não tê-lo anunciado a todos à mesa quando se levantou. Também, não se importava muito. Eram todos amigos e já estavam acostumados com seu jeito meio escrachado.
Neste instante, aproximou-se o pescador, que lhe perguntou se não desejavam fazer um passeio de barco nas praias próximas. De fato, não. Mas, na véspera estavam se lamentando por não poderem ir até Nova Tatajuba, um vilarejo inexplorado que, por terra, exigiria uma caminhada de pelo menos quatro horas. Ninguém, no grupo estava assim, tão em forma. Antevendo a oportunidade de ganhar algum dinheiro dos turistas, o pescador fez o preço do passeio e ela voltou com ele até o bar, onde a sugestão da aventura foi aclamada com palmas e vivas.
Na manhã seguinte, muito cedo para aproveitarem a maré, estavam todos no barco, embora ainda ressaqueados. A viagem foi bem tranqüila e em pouco mais de uma hora, desembarcavam no vilarejo. No caminho até a casa onde ficariam hospedados ela viu caranguejos e os mostrou à Aline, a pessoa do grupo com quem mais partilhava gostos. A amiga esfregou as mãos com prazer, a boca salivando, antevendo os prazeres gastronômicos de mais tarde. Porém, o guia que as acompanhava garantiu que, sendo época de desova e reprodução, seria difícil conseguir exemplares dignos de ir à mesa, sem risco de um desfalque à natureza.
Chegando à vila, foram apresentados ao prefeito que era também o proprietário da pousada e o grupo foi dividido entre os poucos cômodos. Numa primeira olhada, os quartos pareciam enormes. Mas, bastava um segundo olhar para se observar que eles não possuíam móveis. Apenas ganchos nas paredes.
- Redes!! – indignou-se Aline, indicando uma pequena primeira divergência naquela amizade.
Em seguida, obtiveram as diretrizes e caminharam até a Lagoa Azul, bela, salobra e localizada 12 metros abaixo de onde estavam, o acesso possível apenas através de uma duna de areias muito fofas e quentes, que envolviam as pernas até os joelhos.
Para complicar, Eunice, temendo enjoar na travessia de barco, tomou um Dramin. Debaixo do sol escaldante, depois do banho nas águas mornas da lagoa, a pressão foi ao chão. E ela precisou ser literalmente carregada duna acima, pelos amigos que se alternavam na formação da cadeirinha.
Ao retornarem à pousada, exaustos e famintos, tiveram o prazer de se deparar com um banquete dos deuses e comeram como nababos, as iguarias uma a uma desaparecendo da mesa. Em seguida, foram repousar nas redes da varanda, enquanto ela e Aline, continuaram devorando, insaciáveis, os muitos caranguejos “de estralo” que ainda sobravam na enorme bacia. Ambas, glutonas, esqueceram-se de perguntar qual seria o impacto ambiental de seu enorme prazer.
Depois de mais um passeio e do belo pôr-do-sol, recolheram-se aos quartos.
Ela entrou em seu banheiro e deparou-se com um tonel cheio de água sobre o qual havia uma cumbuca. Lavou-se como pode com aquele equipamento tosco quando ouviu a voz de Aline, gritando do outro cômodo:
- Amiga, seu banheiro tem água?
- Tem!
E deu passagem à Aline, que chegou trazendo uma nécessaire com hilariantes xampu e condicionador. Esforçou-se para disfarçar o riso, esperando ouvir o grito da amiga:
- Você disse que seu banheiro tinha água!!
Todos caíram na gargalhada ao ver Aline saindo do quarto, furiosa, carregando a nécessaire lotada de cremes. A essa hora diante de tanto cansaço, as redes já pareciam até bastante confortáveis e convidativas. De madrugada foram acordados pelo pescador para o retorno.
Ao chegarem ao local de ancoramento da canoa, ele se deu conta de que errou algumas horas no cálculo da maré e foram obrigados e empurrá-la até a água, girando-a até vencerem a distância de cerca de 20 metros.
Se a ida havia sido tranqüila, com o barquinho à vela ganhando o alto-mar mas sempre mantendo a costa à vista, o mesmo não se pode dizer da volta. Com o vento contrário, ele precisou ziguezaguear todo o caminho. Em função da escuridão do horário, sem ter onde fixar os olhos, as pessoas no barco começaram a enjoar. Com as viradas da canoa em busca de um vento bom, ela começou a fazer água e o pescador distribuiu cacimbas, para que ajudassem a jogar a água pra fora. No início da manhã, conseguiram vislumbrar Jericoacoara, para novamente ver o barco afastar-se e aproximar-se, várias vezes, numa manobra enlouquecedora. A pobre holandesa, quase transparente de tanto enjôo, irritou-se com mais uma virada que os afastava novamente do destino e atirou longe sua cacimba, quase acertando o pescador.
Ela e Aline, as únicas que não estavam enjoadas, a essa hora começavam a sentir fome. E descreviam com detalhes o café que encontrariam na pousada quando desembarcassem:
- Ai, e aquele pão com manteiga, queijo, presunto...
- Ovo! Tanta manteiga que uma banda vai deslizar na outra... – completou, fazendo o gesto do deslizamento com as mãos.
Neste momento, Eunice, exangüe, sem forças sequer para falar, com um gesto, pediu silêncio às duas. Elas se olharam, sorriram e completaram, quase juntas:
- Hummm! E com maionese!!
Foi o suficiente para que todos os que ainda tinham alguma bílis no estômago jogassem tudo para fora de uma vez.
Ao desembarcarem pagaram pelo passeio e, quem pode, foi tomar o café na pousada. Os outros, recolheram-se aos seus quartos e só foram aparecendo horas mais tarde, para retomarem a bebedeira da antevéspera, apesar dos protestos da holandesa:
- yo tengo hambre, yo no tengo sede...
E se juravam nunca mais entrar numa dessas, sem perguntar mais detalhes sobre o passeio com antecedência, até que apareceu um sujeito sobre um garboso alazão, perguntando se não gostariam de conhecer as redondezas a cavalo, no próximo dia.
De fato, não, mas...
E este seria o começo de uma outra crônica, cuja cômica cena final seria ela pendurada de cabeça para baixo, tentando agarrar-se para não cair, durante o alegre trote de um pangaré mal encilhado...