Onde tem fumaça, tem mau cheiro
ONDE TEM FUMAÇA, TEM MAU CHEIRO
(crônica publicada no jornal "Diário Catarinense" de 12.03.2008)
Na modorrenta manhã de domingo, o chamado foi imperativo, incontestável:
- Venha rápido, agora mesmo, você precisa ver. Ver se não tenho razão quando falo e reclamo dessa gente que ainda não aprendeu a viver em sociedade. Venha ver se não é para um cristão honesto e decente ficar indignado com o mundo e com os homens!
A única motivação de Manoel Osório naquele imenso calor de março era ver com todos os olhos e sentidos, e admirar babando até não mais poder, o magnífico par de pernas de Mônica, longas e torneadas ao máximo capricho, as pernas e as coxas daquela mulher inacreditável, inexistente outra igual, de quem o amigo e vizinho Eduardo, tão eloqüente em sua convocação para que fosse com urgência a sua casa, dizia estar se separando, ou melhor, dizia estar separado mas que, unicamente por conveniências jurídicas e financeiras, aceitaram ambos compartilhar o mesmo teto, supostamente em camas, e até em quartos, não comuns dos dois.
Essa história de ausência absoluta de intimidade é que não passa pelo crivo da razão crítica de Manoel Osório, por mais sóbrio que esteja. Basta imaginar, ele argumenta, cruzar com essa beldade nos corredores penumbrosos da casa em uma madrugada qualquer quando, sedenta e em trajes mínimos (supondo que nalgum traje...), ela retorne da cozinha depois de um refrescante copo de água gelada, as gotas preguiçosas do líquido ainda a lhe descerem lentas pelo peito... Como acreditar que nada aconteça então entre duas pessoas jovens e saudáveis, ainda mais (como é o caso notório deles dois) de sexos opostos? De forma alguma, doutor, essa crendice de camas separadas, de separação de corpos, pode ser muito interessante para um processo judicial; de minha parte, duvido profundamente que seja prática confiável.
Assim considerando em seu íntimo, Manoel Osório chegou ao portão da casa amiga, transpôs a soleira e, por instinto certeiro, encaminhou-se ao fundo do quintal. Bronzeada, de biquíni amarelo-ouro, Mônica mostrava-se deslumbrante ao sol da manhã. Ali só existiam ela, o céu azul impoluto e as águas cristalinas da piscina ovalada. Poluindo a visão paradisíaca, um tapa estalou em suas costas e dois braços o apertaram contra o peito generoso de Eduardo.
- Veja bem, veja se não estou certo!
Manoel Osório só tinha em seu horizonte visual (e mental) as pernas de Mônica, nada mais, e, por esse ângulo, tudo andava perfeito, o mundo seguia girando da forma mais correta e adequada. Pensou, porém: por que Eduardo, depois de tanto tempo morando aqui, ainda insiste em falar na terceira pessoa do singular quando se dirige à pessoa com quem se fala?
- Essa fumaça, perceba, esse cheiro nauseabundo que se impregna casa adentro, gente adentro, essa fuligem que enche a piscina de cinzas. Pior que é médico o sujeito aí ao lado, que promove essa fogueira toda semana com os restos da "podinha" das árvores do quintal.
- Bem, sendo médico, é capaz que a fumaça não cause problemas à saúde. Afinal, nessa área supõe-se que ele saiba o que faz - arrisca Manoel Osório para dizer alguma coisa.
- Uma parte do mato e dos papéis de cada dia - Eduardo ignora a observação - fica para os churrascos. Então, em nome da conservação da energia e da preservação da Natureza, ele aquece a churrasqueira com esse lixo. Não há quem suporte tanta fumaça, fedor e cinzas.
Mônica ergue-se em toda a altura das suas estonteantes pernas e pontifica:
- Eu sei como resolver isso em dois tempos, mas o Eduardo tem um medo que se péla de escândalos. Portanto, para mim, que não reclame mais - diz ela e some de vista.
(Amilcar Neves é escritor e autor, entre outros, do livro "Dança de Fantasmas (contos de amor)". Contos, claro)