Tem mãe que é cega

A história antiga chegou aos nossos tempos pela pena de La Fontaine. Águia e coruja fizeram um pacto de paz, cada uma prometendo não devorar os filhotes da outra. Para não pairar dúvidas, a coruja descreveu as crias: “ os filhotes mais lindos e encantadores entre as aves”. O desfecho não poderia ser outro: a águia devorou uma ninhada de corujinhas feiosas e o pacto se desfez por pane no desconfiômetro da coruja mãe.

Em 1908, os Lever Brothers usaram a fábula para batizar o sabão OMO, acrônimo de Old Mother Owl, velha mãe coruja. A expressão deu pega: mãe coruja é a mãe dedicada, que se orgulha em espalhar aos quatro ventos as virtudes inigualáveis de sua prole.

Minha mãe foi mulher de duas faces: na intimidade, uma sargentona que não se descuidava um instante sequer das regras rígidas na educação das filhas e só emitia elogios em situações especialíssimas. Para o mundo externo, contava as proezas inimagináveis de sua criação. Quem a ouvisse, sem dar um bom desconto pelo exagero, acreditaria que ela gerara semi deusas. Estendia a percepção distorcida a tudo que tocássemos: dela era o melhor genro entre os homens ( devo ser caso único de ciúme do amor filial correspondido sogra-genro); as netas eram incomparáveis; da minha irmã eram as melhores pizzarias do Brasil.

Perdi a conta dos micos que já paguei para que ela provasse a tese da superioridade da própria prole. Recitar poemas de Kipling em inglês nas festas da família durante a minha adolescência era o mínimo que a sua imaginação concebia. Ela foi tão perfeita na corujice que os limites de abrangência ultrapassaram as fronteiras da vida. O maior mico me foi reservado para o pós morte. Como inventariante do seu espólio, na última semana percorri os bancos onde ela mantinha movimentações financeiras, para cumprir exigências legais. Em cada banco, o gestor da conta relatava um fato pitoresco sobre ela, a maioria envolvendo, direta ou indiretamente, a mim ou à minha irmã. Eu escutava, agradecia o carinho, contendo a emoção. Na última visita, o gerente fez um comentário tão particular, tão a cara dela, que não consegui me controlar e deixei jorrar as lágrimas.

A certa altura, percebi o ridículo da situação e o mico tardio que ela, involuntariamente, me proporcionava. Passei do choro ao riso. Preocupado, o gerente me ligou à noite para certificar que eu estava bem. Não o culpo: mulheres maduras, fardadas, cheias de estrelas no ombro, alternando choro e riso, não aparecem em agências bancárias todo dia. Coitada da minha mãe, devo ter desfeito toda a boa impressão que ela construiu cuidadosamente ao longo dos anos.

Graças a Deus não herdei este traço materno: sou linha dura com as minhas filhas. Quero educá-las bem e não deixar com que cresçam com o ego inflado. Intimamente, no entanto, sei que tive o privilégio de dar à luz os seres mais perfeitos sobre a face da Terra. Que mal pode haver em elas demonstrarem isso para os meus amigos de vez em quando?

Maria Paula Alvim
Enviado por Maria Paula Alvim em 11/03/2008
Reeditado em 27/06/2008
Código do texto: T896963
Copyright © 2008. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.