"Recordações da Infância" ou "Os Implacáveis" = Recordações da infância=
Ele era o nosso melhor e mais constante amigo. Quase um irmão. Éramos três irmãos unidos, bons de briga, amigos dos amigos e, conforme os ensinamentos de nosso pai, generosos no tocante ao que possuíamos. E o que possuíamos era, além de nosso sempre bem feitos carrinhos de rolemãs, boas bicicletas antigas, inglesas, que pareciam inquebráveis e duradouras por toda uma vida.
Nosso bom e fiel amigo nunca ficou um dia sem andar de bicicleta. Um de nós sempre emprestava a ele e passava para a garupa do outro. Quatro meninos em três bicicletas, em longos passeios pela Vila Mariana, Bosque da Saúde, Ipiranga e, vez ou outra, às escondidas, até o centro de São Paulo, a aventura maior e mais proibida pelos pais.
Um dia, de repente, nosso amigo ganhou do pai uma bicicleta nova. Além de nova, linda, cheia de novidades que não possuíamos, tais como freios funcionando, espelho retrovisor, pára-lamas, selim coberto, buzina moderna, etc.
Claro que, meninos ainda, amigos do novo e feliz proprietário de uma bicicleta zero quilômetro, ficamos doidos pra estreá-la. Mas ele, “infelizmente”, não poderia emprestá-la a ninguém. O pai o proibira de emprestar a bicicleta sob pena de retomá-la e guardar de vez na área de serviço.
Não acreditei. Na primeira oportunidade perguntei ao pai dele se havia mesmo proibido o empréstimo da bicicleta, e o homem, além de confirmar, ainda me perguntou grosseiramente se não tinha esse direito.
Eu não disse nada. Apenas ri e saí. O que se podia esperar de uma pessoa que compra um carro só pra dizer que o tem? Uma pessoa que durante anos manteve o carro parado à porta de sua casa, sem andar, porque o veículo gastava gasolina. Uma vez por semana ele o ligava e mudava de lado na rua. Nunca vimos a família, que morava em frente à nossa casa, dando um passeio no belo automóvel.
Nosso castigo para o agora ex-amigo foi cruel. Nossa turma de duas rodas havia aumentado bem, vivíamos aventuras gostosas pelo asfalto novo do bairro, fazíamos competições de loucuras entre nós, e ele estava proibido de aproximar-se da turma, de sair dos limites de nossa rua, de sequer tentar aproximação. E obedecia. Sabia que éramos duros em nossos castigos, certeiros em nossas pontarias com os estilingues, e sempre dispostos a “massacrar” um inimigo. Principalmente um novo inimigo que um dia foi amigo de ir todos os dias à nossa casa para assistir televisão., acompanhando conosco as “Aventuras de Rin-tim-tim”, “O Patrulheiro Rodoviário”, “O Zorro” e muitas outras séries que nos apaixonavam.
Quando eu lhe comuniquei nossas decisões, tentou argumentar. Disse que fora o pai quem o proibira. Não colou. Se fazíamos tantas coisas erradas, desobedecíamos nossos pais tantas vezes, porque não desobedecer daquela vez e retribuir nossa camaradagem? Nem sei porque ele não apanhou feio naquele dia.
Dois anos depois a bicicleta dele continuava com aparência de nova em folha, ele continuava solitário com ela, passeando sozinho pelas imediações de nossa casa, e nós nos mudamos para o Paraná. Sorte dele. Se tivéssemos continuado em São Paulo ele teria passado uma infância bem triste. Naquela época não sabíamos o que era perdão. Hoje em dia parece que estamos aprendendo. Mas não garanto.