Caçada ao lobisomem

Você pode não acreditar, mas já vivi sob o terror de um lobisomem.

Claro que era criança e nunca vi a fera pessoalmente. Mas a cidade toda sabia da sua existência e os homens válidos, saiam em ronda todas as noites de lua cheia na caça do bicho.

Hoje, já adulto, e como tal conhecedor dos pecados do mundo, tenho cá minhas idéias do que significavam aquelas rondas noturnas, todas de homens casados...

Na época, entretanto, eu os considerava uns heróis embora nunca tenham tido a chance de encontrar e combater o bicho.

A história começou, quando Louro, um conhecido bêbado local, apareceu na farmácia todo arranhado e com contusões pelo corpo. A cidade não tinha hospital nem médico, e o farmacêutico era a pessoa responsável pela assistência, aplicação de injeções, curativos, pequenas cirurgias e outras coisas menos graves porque em casos de gravidade mesmo, a pessoa morria e a gente achava que era natural, tinha chegado a hora dela e Deus chamou. Isso todo mundo sabia, quando Deus chama não tem o que se fazer, neguinho vai mesmo. O vigário falava que era a vontade do Altíssimo, tinha todo o ritual de defuntos, velório, enterro, missa etc, a vida seguia e a família tinha mesmo que se conformar, afinal era a vontade de Deus.

Mas deixando as reflexões religiosas de lado, voltemos ao lobisomem.

Louro chegou todo contundido e seo Otacilio, o farmacêutico, horrorizado perguntou o que tinha havido.

-Nem lhe conto, seo Otacilio, ontem de noite quando voltava pra casa, um vulto preto enorme, igual a um cachorrão saltou em cima de mim me derrubou no chão e começou a me arranhar e a me morder.

- Quando eu achei que ia morrer, me lembrei de gritar valei me meu padim padi Ciço, o bicho me largou e se enfiou no mato, ali perto do matadouro.

Pronto, isso bastou pra mudar toda a rotina da cidade.

Depois de devidamente atendido, cheio de mercúrio cromo e esparadrapo, Louro foi contar a historia no boteco e logo um grupo de pessoas mais representativas da sociedade formou uma comissão e foram se reunir com o prefeito, o vigario e seo Otacilio pra tomarem providencias quanto à segurança. Ninguém, evidentemente, percebeu que a história mudava de acordo com o numero de doses de cana que o Louro ingeria.. Agora, depois de umas cinco caninhas, ele já tinha brigado feio com o bicho, e com mais uma, tinha conseguido enfiar a faca nas costas do lobisomem que largou ele e saiu ganindo como um cachorro doido pros lados do seminário. Essa sutil mudança de ação e de local não foi percebida e a comissão resolveu, por sugestão do subdelegado, formar uma patrulha e sair em rondas pra tentar liquidar a fera. Nós os meninos, ficamos proibidos de brincar na rua depois das oito da noite, nunca entendi bem porque, considerando-se que o lobisomem só atacou mesmo o Louro e foi bem depois de meia noite, mas ordens são ordens e menino tem mais é que obedecer e ir dormir cedo pra crescer com saúde, era o que as mães da gente diziam.

Iniciou-se então o período de especulações pra saber quem era a pessoa que se transformava na fera. Vários suspeitos foram apontados mas a certeza se deu quando alguém lembrou que seo Feitosa da loja de ferragens era muito magro e feio e quase não falava com ninguém. Além disso, era muito pálido e, como é de conhecimento público, o lobisomem tem como principal característica, um amarelão crônico, quando fora de serviço. Aparentemente seo Feitosa não gostou muito da acusação porém ninguém deu atenção aos protestos dele e toda cidade por precaução passou a evitá-lo, afinal nunca se sabe...

O que eu sei, é que toda noite de lua cheia o pessoal da ronda saia, passava a noite zelando pelo bem estar e a segurança do povo e voltavam pra casa de manhã cedo, com um estranho cheiro de perfume barato e um bafo de cana de fazer gosto.

Com o tempo o assunto foi esmaecendo, o lobisomem parece que ficou com medo e não atacou mais ninguém a as rondas noturnas foram rareando. Quando seo Feitosa fechou a loja e se mudou, tudo então voltou ao normal para o desespero de Pólo Norte, a cafetina do cabaré local.

Pra você ver, antigamente havia mais espírito cívico do que hoje, principalmente nas cidades pequenas. O que os cidadãos não faziam em defesa da comunidade...

ZéCarlos
Enviado por ZéCarlos em 23/12/2005
Reeditado em 23/12/2005
Código do texto: T89618