Sublimação dos conselhos de mamãe

Mamãe, já estava cansada da labuta de mais um longo dia.

Cuidara da prole, aquela escadinha de vidas, cada uma com suas necessidades específicas, alguns já iam para a escola, outros ainda ficavam em casa.

Foram ao todo dez filhos! Nessa época nove! Hoje somos oito!

Minhas primas ajudavam como podiam. Mas era tudo muito limitado, aquela criançada dava muito trabalho.

E mais ainda, os mais grandinhos já tinham ampliado os limites do território. Em pouco tempo, dada à liberdade que tínhamos, a cidade ficava pequena.

Como proteger o filho longe das vistas. Os perigos eram imensos. O rio caudaloso e a represa ficavam a incomodar as mães. Não raro, ocorria algum acidente de afogamento. Entre outros perigos para a infância, havia que se prepararem as crias para um outro mundo selvagem. O mundo dos adultos.

Caía a noite e a mãe assim nos seus últimos esforços do dia, achava o momento mais propício para contar as estórias infantis, cheias de enredos apelativos com analogias mil do comportamento dos animais na sua relação "familiar" e a dos humanos no seu processo de socialização.

Mesmo assim, ela ainda juntava forças, enquanto docemente, entoava algumas canções de ninar, que não sendo ainda suficiente, dada ainda a relutância em dormir dos espertos rebentos, que pediam pela milésima vez para que ela contasse a historinha da mamãe ovelha e os seus cordeirinhos.

E ela passava a contar a fábula assim:

Era uma vez, uma mamãe ovelha que tinha muitos lindos cordeirinhos. Eles eram muito vivazes, e passavam o dia a correr prá lá e prá cá, sob o olhar atento da mãe, que balia a qualquer ameaça de perigo para os pequenos traquinas.

Sempre que se distanciavam um pouco mais, a zelosa mãe já arrumava um atrativo qualquer para que eles se distraíssem por algum tempo mais próximo dela.

Ali mais pertinho dela, aproveitava para dar conselhos e mostrar os perigos que corriam.

A mamãe ovelha, sempre alertava os seus cordeirinhos para que não saíssem muito longe, enquanto ela cuidava dos afazeres domésticos, tais quais lavar as roupas, com aquele montão de fraldinhas, fazer a comida, pois logo chegaria o papai carneiro com fome, preparava o café, fazia pão, enfim... trabalhava como uma condenada para dar conta do recado.

Assim passavam os dias.

Os cordeirinhos iam crescendo felizes e sagazes, e dia a dia, buscavam novas emoções, mas aí a zelosa mamãe ovelha ia aumentando as doses homeopáticas, já que os simples conselhos já não estavam surtindo efeito.

Dizia ela, então que não muito longe dali, morava um temeroso lobo, malvado e muito voraz, cuja predileção era a carne tenra de cordeirinhos.

Descrevia o lobo de uma forma tão dramática e realista que os danadinhos ficavam um pouco mais perto dela, tremendo de medo só de imaginar as cenas que a mamãe descrevera. Andavam um pouquinho a mais e já voltavam, lembrando-se dos fatos narrados.

Assim, agora de forma mais ameaçadora, tentava ela mantê-los próximo, inibindo assim a vontade deles de desbravar mais o território através do medo.

Mas, como ocorre nas melhores famílias, sempre tem um dia que o diabo atenta uma ou outra criança. E o capeta então, começou a cochichar nos ouvidos dos cordeirinhos... não liguem muito para o que sua mãe diz não, tudo é para mantê-los perto dela, tudo, na verdade, para satisfazer o medo dela mesma. E vocês não serão tão covardes que ficarão até quando escondendo-se entre as saias de sua mãe. Até quando ficarão aí mamando na sua mãe?

Era o que faltava para que os loucos por aventuras e de domínio do mundo, fossem se afastando, e se esquecendo dos tantos conselhos dados.

Foi assim que um belo dia, os meninos resolveram sair mais longe rumo a campina, atrás de uns montes de pasto verdejante.

Diziam entre eles enquanto caminhavam, para que ouvir tanto a mamãe, afinal já somos crescidinhos... e, Eles já não dependiam mais de tanto leite, tinham desenvolvido o seu rumem e podiam saciar por si só a fome, ainda mais com aquelas deliciosas ramas de capim substancioso que a primavera trouxe naquele ano.

O córrego que rolava garboso e cantante, próximo da cabeceira vinha de uma nascente de águas cristalinas, e lhes saciava a sede.

Assim foram se distanciando e já não ouviam mais o balido desesperado da mãe aflita a lhes procurar.

Mal sabiam eles que já estavam sendo espreitados pelo faminto lobo.

Ele morava naquela mata ciliar que ficava próxima da mina d'água.

Eis que de repente, aparece o lobo com aquela fúria enorme, dando um grande berro, abria a enorme boca, pingando salivas e lambendo-se enquanto corria na direção daqueles cordeirinhos, com os olhos enormes flamejantes e vermelhos de fome e ódio, gritando... peguei-os... peguei-os... porque estão tomando de minha água e pastando da relva que fica em meu território... moleques sem mãe, desatinados, vou DEVORÁ-LOS....

Assim o lobo arremeteu-se contra os fracos e desesperados cordeiros, que correram cada um para um lado, desesperados e com o coração batendo a mil. A adrenalina fora insuficiente para alguns deles, e foram alcançados facilmente. Outros, paralisados de tanto medo, foram os primeiros a serem despedaçados pelos dentes pontiagudos daquele facínora.

Apenas um sobrou, e acertou o caminho de casa, e correu ao encontro da mãe desesperada, que balia a mais não poder, procurando os outros irmãozinhos daquela prole grande que tinha.

O cordeirinho mais esperto conseguiu assim se salvar, enquanto seus irmãozinhos eram devorados pelo impiedoso lobo. Chegou maltrapilho, com a roupinha toda em frangalhos, sujas de barro e sangue, cheio de ferimentos pelas garras dos lobo e pelos espinhos da mata virgem pela qual atravessara, sabe-se lá como.

A mãe desesperada correu para o local daquele tenebroso ataque, mas encontrou apenas restos de vestes e sangue esparramado pelas folhagens. O regato, antes cristalino, estava agora rubro de sangue dos pobrezinhos.

Só restou a ela, chorar desesperadamente, soluçando a mais não poder, lamentando a sorte dos demais de sua linda família, todos muito bem alimentados, e cheios de bons conselhos.

Aí, ouviram ainda um balido lá no fundo, que saía de um enorme buraco. Mais um havia sido salvo por pura obra do acaso, porque caíra em um velho fosso, profundo.

A mãe desesperada, amarrou o pouco que sobrou dos trapos, e fizeram uma corda e tiraram mais um irmãozinho com vida, embora todo quebrado, e cheio de dentadas enormes.

Assim voltaram para casa somente a mamãe ovelha chorando e os dois combalidos sobreviventes.

Foi uma lamúria de muitos anos, a mamãe jamais esqueceria seus outros filhotinhos que foram dizimados por aquele lobo malvado e terrível.

A mamãe chorou até o último dia de sua vida.

Ouvindo essas coisas, o terrível da história, fazia com que os pupilos ficassem de olhos arregalados. As perguntas vinham uma atrás da outra, durante a narrativa, e nessas alturas, o final da estória já quase não era mais ouvida... assim iam rendendo-se um a um e caíam nos braços de Orpheu para uma longa noite de sono.

Assim, a mamãe ia ensinando seus filhotes a também a não ouvir os maus conselhos, a liderar sempre e nunca ser liderado, não seguir as falsas amizades, aprender a defender-se em momentos de perigo, olhar o terreno que pisamos, enfim, preparando-nos para o longo tempo de vida em um mundo muitas vezes inóspito e cheio de maldades, intolerância, destruído pela ganância, sujeitos à exploração do trabalho, mercê da ignorância e das diferenças sociais que vão matando a cada dia os jovens, quer através de crimes, quer através dos vícios que lhes corroem a mente e o sistema nervoso, tornando os sobreviventes dessa hecatombe imprestáveis pelo resto de suas vidas, a vegetar feito parasitas da sociedade a sugar o suor do trabalho alheio...

Anos mais tarde, vim correlacionar a cena da mamãe contando historinhas com a poesia de Manuel Bandeira que aqui tomo a liberdade de transcrever, para relembrar:

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O menino doente

O menino dorme.

Para que o menino

Durma sossegado,

Sentada a seu lado

A mãezinha canta:

- Dodói, vai-te embora!

"Deixa o meu filhinho,

"Dorme... dorme... meu..."

Morta de fadiga,

Ela adormeceu.

Então, no ombro dela,

Um vulto de santa,

Na mesma cantiga,

Na mesma voz dela,

Se debruça e canta:

"Dorme, meu amor.

"Dorme, meu benzinho..."

E o menino dorme.

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Assim, acho que o final das historinhas, não era mais a voz da mamãe que ouvíamos e sim de um anjo que vinha terminar seus conselhos, últimos daquele longo e penoso dia.

Extenuada também rendia-se...

Um dia, Mamãe se foi, mas deixou suas historinhas na minha memória a me conduzir e que ainda encantarão muitas crianças estou certo!

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Casimiro de Abreu, na sua tão curta passagem por essa terra, ainda muito jovem nos deixou, também teve seu tempo em vida de dedicar alguma coisa à sua mãe, e, nos devaneios de seu exílio para recuperação da saúde, nos deu essa terna e singela poesia:

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Minha Mãe

Da pátria formosa distante e saudoso,

Chorando e gemendo meus cantos de dor,

Eu guardo no peito a imagem querida

Do mais verdadeiro, do mais santo amor:

- Minha mãe!

Nas horas caladas das noites de estio,

Sentado sozinho, co’a face na mão,

Eu choro e soluço por quem me chamava

- Ó filho querido do meu coração!

- Minha mãe!

De noite, alta noite, quando eu já dormia,

Sonhando esses sonhos dos anjos dos Céus,

Quem é que meus lábios dormentes roçava,

Qual anjo da guarda, qual sopro de Deus?

- Minha mãe!

Feliz o bom filho que pode contente

Na casa paterna, de noite e de dia,

Sentir as carícias do anjo de amores,

Da estrela brilhante que a vida nos guia!

- Uma mãe!

Por isso eu agora, na terra do exílio,

Sentado sozinho, co’a face na mão,

Suspiro e soluço por quem me chamava:

- “Ó filho querido do meu coração!”

- Minha mãe

MARCO ANTONIO PEREIRA
Enviado por MARCO ANTONIO PEREIRA em 09/03/2008
Reeditado em 10/03/2008
Código do texto: T893909
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