“Quem ficou em mim?”

 

 

             Não haveria razão para escrever se não houvesse a memória. Os resquícios das lembranças são como um combustível indispensável para aqueles que como eu, fazem do ofício de escrever uma ponte para a felicidade ou até mesmo, uma cachaça.

            Por conta disto, estes dias debrucei-me sobre a janela de minha alma e perguntei-me: que memórias ainda residem neste coração de poeta?

            Imediatamente lembrei-me de personagens distantes, perdidos na névoa do tempo e também de rostos que recentemente tomaram conta de meus pensamentos e que assim tornaram brisas, todos os ventos que atravessei.

 

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            Nos anos oitenta, durante a apresentação do cantor britânico Sting em pleno maracanã, conheci um cara chamado Trevor. O cara em questão era um compatriota do então ex-líder do The Police, banda de rock seminal para o som que nasceria na década seguinte.

Por mais que meu inglês não fosse à época um bom caminho a ser trilhado por quem desejasse se comunicar, acabei passando quase todo o concerto “conversando” com Trevor.

Entre um hit e outro de Mr Sting, ele me dizia:

- Hey “Andersen”, isto é música! Isto é alma! – repetia batendo no peito.

- Se você pode sentir isso você é verdadeiramente humano – disse-me.

            Achei engraçado como um inglês, à quem normalmente imputamos a imagem da frieza, se deliciava tão intensamente com cada acorde de Sting.

            Num determinado momento do show, Trevor me olhou e disparou:

- Hey “Andersen”, o que você é de verdade “bem lá no fundo” de sua alma?

- Bicho, acho que eu sou poeta – murmurei em português.

- O que você disse Andersen? – perguntou fazendo careta.

- I’m just a poet Trevor… just a poet! – repeti com o olhar vagando no céu.

            Por uns instantes,Trevor me olhou quieto. Ao fim da bela canção “Seven Days”, ele me disse:

- Então você é um deles Andersen!

- “Deles” quem seu maluco? – retruquei.

- Você é um anjo. Poetas são anjos. E os anjos poetas escrevem coisas para nos anestesiar das dores da vida. – respondeu com um ar sério.

            A poesia das palavras de Trevor, me tocou profundamente. Fiquei o resto do show calado e emocionado.

            Enquanto Sting se despedia do público, Trevor se despedia de mim com uma frase que, de alguma maneira faz com que ele esteja aqui até hoje:

- Hey Andersen, a poesia é o carinho dos anjos. Leve seu carinho ao mundo.

 

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Certa vez em Salvador, eu procurava uma sandália de couro para presentear uma amiga. Em meio a acarajés e patuás, andava tranquilamente pelo Mercado Modelo quando fui abordado por uma senhora de cabelos brancos e muito risonha.

Ela segurou na minha mão e mirou dentro dos meus olhos:

- Você não é o poeta? - perguntou.

- Sim, mas eu tenho quase certeza de que não sou o poeta que a senhora está procurando, pois sou um poeta absolutamente desconhecido – respondi.

- Seu bobo! Saiba que eu li muitas coisas ao seu respeito – insistiu.

- É? E onde a senhora leu? – perguntei entre o riso e o deboche.

            Senti que ela começou a não gostar de minhas respostas, pois imediatamente soltou minha mão.

- Olha aqui Francisco, eu sei que poeta é um povo meio estranho, mas não é porque eu acho seus poemas porretas que você vai pensar que vai me enganar ta? – vociferou.

- Olha só eu não me chamo Francisco. Meu nome é Anderson e eu não sou o poeta famoso que a senhora esta pensando! – respondi já meio penalizado.

- Humm... – resmungou desconfiada.

- Você sabe quem é seu pai? - perguntou mudando de assunto.

            Achei estranha a pergunta mas, como não queria mais contraria-la resolvi contar que meu pai havia falecido a muito tempo e se chamava Alípio.

- Meu rei eu tô perguntando de “pai de cabeça” – explicou.

- Olha só eu não entendo muito dessas coisas de umbanda ou candomblé, mas um dia me disseram que era Ogum – respondi com receio de falar besteira.

- Ahhh. Ogum! Sua mãe deve ser Iemanjá e por conta disso a sua poesia vai cortar como o aço e envolver como as águas - emendou.

            Agradeci a explicação daquela mulher falante e risonha, mas lhe disse que precisava ir, pois eu ainda tinha que comprar o presente de minha amiga e estava muito confuso com aquela conversa toda.

- Olha só meu filho, põe uma coisa na sua cabeça. Você vai fazer mil coisas, e querer ser muita coisa. Mas a única coisa que você nunca vai conseguir deixar de ser, é ser poeta. E você vai lembrar dessa velha Mariana te dizendo isso sob as bênçãos de Nosso Senhor do Bonfim – gritou.

            E não é que eu não esqueci mesmo?

            Saravá velha Mariana!

 

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          Era inverno na praia da Joaquina em Florianópolis.

          Estava ali em um passeio inesperado, mas tentando relaxar em meio às tempestades que pipocavam em minha vida no início de 2003.

         Cheio de casacos e com uma caipirinha na mão direita, eu olhava meu filho, então com pouco mais de dois anos a correr pelas areias ao lado da mãe.

        Envolvido pelos sons das ondas quebrando, quase não escutei a voz do menino que apareceu do nada.

- O senhor está triste? – perguntou-me com um sorriso no meio da face alva.

- O que você faz sozinho aqui menino? Onde estão seus pais? – perguntei mal educadamente sem responder a sua pergunta inicial.

- Estão ali! – respondeu apontando para uma mesa ocupada por pessoas que falavam alto e gesticulavam muito.

- Mas me responde, o senhor está triste? – insistiu.

- Não, eu estou muito feliz – menti.

- Não é o que parece, sabe tio? – disse aquele menino sem piedade.

            Imediatamente lancei meu olhar para o meu filho que rolava na areia com sua mãe em gargalhadas gostosas como uma manhã de setembro.

- Tio, o que o senhor faz da vida? – perguntou o pestinha.

- Tenho uma empresa de computadores – respondi entediado.

- Meu pai é médico e minha mãe é professora – contou-me.

            Olhei para aquele menino e fiquei a me perguntar porque diabos ele estava ali a interromper as minhas lamúrias naquela manhã.

- E você, o que vai ser quando crescer? – perguntei.

- Ah tio, eu vou ser um escritor  - respondeu com o mais lindo sorriso que eu já havia visto até então.

            Aquela resposta caiu como uma bomba de “zilhões de megatons” na minha cabeça. A vontade de me atirar no mar foi tão grande que eu resolvi pedir outra caipirinha.

- E porque você quer ser escritor, em vez de ser um empresário ou um médico como o seu pai? – questionei, devolvendo a explosão covardemente.

- Porque eu preciso ser feliz quando eu crescer entendeu tio? – devolveu ele sem piedade.

- Sabe que eu antigamente escrevia muitos poemas? – disse já me rendendo.

- E não escreve mais? – perguntou cruel.

- Não – respondi amargo.

- Ah tá, agora entendi! – disse com um ar de severidade.

- Entendeu o que? – perguntei.

- Porque o senhor está triste – disparou, como que num tiro de misericórdia antes de sumir por entre as mesas.

 

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            Fim de 2007. Um amigo do peito decide se casar e me convida para ser o padrinho. Quanta honra!

            Mesmo em meio à correria do lançamento do meu livro, pego um vôo até Goiânia, onde será realizada a cerimônia.

- Estou impressionado com a beleza das mulheres daqui – disse ao noivo.

- É por isso que eu me caso amanhã – respondeu meu amigo bem humorado.

            A cerimônia religiosa transcorre de maneira rápida e emocionante.

            Em seguida os noivos recebem os convidados num belíssimo clube da cidade, onde um farto buffet e garrafas de whisky nos aguardam.

              Algumas doses de escocês legítimo depois, uma amiga me chama para dançar, e durante alguns minutos tive a impressão que a queda era algo inevitável.

           Mas foi dali da pista de dança que meus olhos se depositaram na mais linda das paisagens daquela festa. Uma mulher deslumbrante dançava com suas amigas no meio do salão.

             Sua morenice deslizava por dentro de seu vestido escuro, e seus cabelos negros e lisos bailavam para o deleite e desbunde do meu poetar.

             Nesse momento tive a certeza de que eu ouvi “um estranho sinal de ocupado” pois não conseguia mais raciocinar.

             Retornei à minha  mesa e comentei com um outro amigo:

- Bicho, o que é aquilo? – perguntei trôpego.

- Realmente ela é linda – ele disse.

- Linda é minha mãe, ela não é dessa dimensão – comentei extasiado.

            Em poucos segundos eu já estava inconvenientemente puxando a noiva pelo braço e perguntando quem era aquela pequena obra divinal.

- Ah é minha prima. O nome dela é Thy – respondeu achando graça.

            Thy. Ela ainda tinha quer ter um nome desses?

            Meu amigo ao ver minha fisionomia inebriada, não perdeu tempo:

- Faça um poema para ela, quem sabe você não a conquista? – alfinetou.

- Faça o seguinte, publique no diário oficial que todos os meus poemas agora são dela, inclusive os que eu ainda farei – devolvi, ainda em meio ao êxtase.

            Como por encanto ela já estava dançando perto de mim e ao alcance daquele meu olhar quase senil.

            A cada movimento de suas mãos ou a cada reluzir de seu sorriso eu transbordava em versos e orava para não esquece-los antes da festa terminar.

            Mas a folia tomou conta da festa e eu, qual Arlequim, buscava sem sucesso aquela “divina colombina” do planalto central.

            Obviamente retornei ao Rio de Janeiro sem conseguir falar com Thy, e lhe dizer os versos que compus e perdi em meio a marchinhas carnavalescas e doses de scoth.

            Mas como a sorte não abandona os loucos, amantes e poetas, eis que em poucos dias eu já fazia contato através do computador, com aquela que batizei nos meus sonhos de “Quase Musa”.

             Sim “Quase Musa” porque desde que a encontrei não a tirei do pensamento um só instante, mas não consegui mostrar uma só linha do que compus e esqueci naquela noite em Goiânia.

             Ah essa coisa de ser poeta faz com que a gente possa tudo. Absolutamente tudo! Até mesmo ter uma quase musa, que nunca ganhou um verso, que nunca olhou com seus olhos de menina nos olhos desse poeta quarentão, e que nem sabe do que anda no meu peito em forma de verso e prosa.

            Minha “quase musa” quando me vê nesse mundo virtual costuma anunciar sua chegada com um doce e cativante “oiêêê”...

            Minha “quase musa” adora quando eu a chamo assim...

            Mas minha “quase musa” ainda não sabe que ela já é Musa.

            Minha “quase musa” é linda. E agora é uma advogada que tem planos de logo vir ao Rio de Janeiro.

           Quem sabe assim ela não redige logo aquele documento que vai tornar minha poesia e minha inspiração como de sua propriedade para sempre?

 

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Trevor sumiu pelo mundo, e não sei dizer se está entre os anjos.

Velha Mariana já deve estar num mundo melhor que o nosso.

O menino da Joaquina deve ter crescido e viver feliz por ai.

Todos de alguma forma, ficaram em mim...

E Thy? Bom... ela ainda vai chegar, mas tomara que fique para sempre!