O Peso da Página
O Peso da Página
- Vai cara, vira logo essa página.
- Tá difícil – e estava mesmo.
Ele estufou o peito, daí imbuído, eu suponho, de caridade fraterna, cuja interpretação é sinônimo de paciência, me perguntou:
- O que exatamente, está difícil, as palavras ou as imagens?
O bom de encontrar pessoas pacientes no caminho è que elas não transformam suas impressões em preto no branco. Os dotados da paciência trafegam na sintonia fina, e além dos tons de cinza conseguem até visualizar as cores.
- Olha, as palavras estão indo embora, tem umas que ecoam ainda, mas a cada dia vão se desvanecendo. Eu poderia até dizer que o mesmo acontece com as imagens, mas...
- E são muitas imagens?
- Inúmeras. Tem as das crianças, as crianças todas juntas, em vários lugares, vários passeios...sem falar no cotidiano, é imagem pra cacete, com seus significados, a primeira festa à noite, os amigos, as crianças transmutando em quase adolescentes, mais passeios,mais cotidiano, conversas...
- E ela?
- Ela? – respondi absorto – não sei, também tem muita imagem...
- Boas? – indaga ele, tentando, na extração, de fato extrair.
- Evidente. Senão a página não seria tão pesada.
- Então faz uma relação, homem, veja as mais singelas, as que se destacam...
Gozado, pensei, não é nada grandioso, não se trata de um natal com o Tom Cruise e a Nicole. O que vem nas imagens são miudezas, arroz com feijão mesmo, empurrando carrinho no super-mercado, olhando o entardecer na janela, xiiiii, tem imagem, todas simples.
E eu lhe disse isso.
Ele assentiu. Disse que uma andorinha não faz verão, precisa de duas, já, um bando, é ilusão. E ilusão não pode caber na página.
- E as palavras? – ele esta afim de extrair mesmo.
Repliquei que por hora o silêncio era conselheiro, porque transformar a página num áudio-visual, nesse instante, iria sobrecarregar o fardo. Tudo a seu tempo.
Ele anuiu. Porque os sábios sabem que não detém toda a sabedoria, que também são aprendizes, e que aprendizado é ouvir.
- No lance do áudio teve uma passagem engraçada...- murmurei, perdido em lembranças.
Ele indagou com as sobrancelhas.
- Idealista falido.
- Você ouviu isso?! – ele gargalhou – e o que é que doeu mais, o idealista ou o falido?
- O que doeu foi a fonte emissora, porque ali ficou claro que a conexão deixara de ser. Idealismo pulsa em mim, separar a obstinação da infantilidade e continuar nesse caminho é a tarefa, que no mais é diária, às vezes grata, às vezes nem tanto. Já o falido, dei de ombros, é só um termo que remete a transitoriedade. E quem disse que o jogo acabou? Eu tô em campo, ainda.
Ficamos um pouco em silêncio. Cogitamos de pedir mais um café mas ele me disse que tinha que ir, estava atrasado para um compromisso.
- Tem certeza de que não quer ajuda para virar a página?
Agradeci, inclusive, com o olhar dos agradecidos. Depois, acrescentei que certas tarefas acontecem de repente, e em geral, sem testemunhas.
Quando ele estava na calçada, prestes a chamar um táxi, voltou lentamente até a mesa e com precisão indagou:
- E as mágoas?
Confesso ter me surpreendido com a rapidez da minha resposta. Disse-lhe que devemos tratar delas usando truques, como os mágicos fazem ao tirar coelhos de cartolas. E que no meu caso, quando elas surgiam, o truque da vez se travestia numa frase que eu nem sei se é frase:
- É como é.
Ele pensou dois segundos, sorriu e partiu.