"Eles voltaram!"

"ELES VOLTARAM!"

(crônica publicada no jornal "Diário Catarinense" de 05.03.2008)

Como sempre, o autor desta crônica, como ficcionista, exagera a fim de conferir maior dramaticidade ao texto (se fosse um político, estaria mentindo sem pudor). Os escritores de ficção desfrutam, entretanto, dessa prerrogativa legítima de "mentir", ou fantasiar, para melhor ressaltar a crueza dos fatos, para mais bem retratar a autêntica face dos homens.

Um romancista pode imaginar uma reunião de autoridades públicas em homenagem à cultura (a qual costumam desprezar), criar intermináveis discursos feitos num cinema, por exemplo, situado em um centro cultural, sublinhar com ironia e sutileza as passagens mais marcantes do que esses personagens - fictícios, enfim - tivessem dito, e deixar nos leitores a impressão difusa, ainda que palpável, de uma grande farsa, de que tudo não passou de um bando de marmanjos mentindo descaradamente em uma solenidade oficial. Se a reunião houvesse realmente acontecido, a farsa, é claro, seriam os políticos de carreira que detestam lidar com esse povo incontentável envolvido com a cultura até a alma.

Mas o que aconteceu na quinta-feira passada, 28 de fevereiro, em verdade, em verdade vos digo, foi que um jacaré tornou a ser visto no Rio do Sertão, logo após uma das pontes antigas, que dá passagem aos carros que saem do grande centro comercial implantado à margem direita do rio. E também aconteceu, em verdade, em verdade vos digo, que logo antes de uma das novas pontes sobre o mesmo rio, que franqueia a passagem a quem se destina ao prédio, uma tartaruga voltou a ser vista nas águas do Rio do Sertão. Ora, como aquele trecho foi declarado formalmente uma zona urbana de ocupação comercial (por isso que existe ali um centro, exatamente, comercial), o jacaré e a tartaruga é que estão errados, trafegando por onde não deveriam se meter: eles dois e as inúmeras garças, de todas as cores, tamanhos e graças que se possa imaginar. Depois não venham, todos, reclamar do que lhes possa suceder.

Por coincidência (e sorte do centro comercial), o manguezal do Itacorubi só começa mesmo logo depois da última calçada que circunda o grande edifício, embora o terreno tipicamente pantanoso se estenda desde a Universidade Federal de Santa Catarina, do outro lado, de onde vem o Rio do Sertão, até o Saco Grande, uma enseada que dava nome a um bairro vizinho que o "pudor comercial" dos empreendedores de grandes edifícios de apartamento que por lá se apinham tenha forçado a troca do nome, de forma cínica e hipócrita, para "Bairro João Paulo". Aliás, logo após a última ponte, nessa calçada citada, o Rio do Sertão comporta-se de forma sumamente estranha: naquilo que seria um dos seus afluentes, que o encontraria em ângulo agudo, concorrendo com a corrente do rio maior, o que se vê é um defluente, pelo qual parte das águas vaza em velocidade e em ângulo fechado para trás, como se um sorvedouro, um sumidouro, atraísse irresistivelmente parte da vazão do rio principal.

Em verdade, em verdade vos confesso que o assunto da mensagem eletrônica enviada pelo Arno Blass em 30.07.2007 era "Voltaram...", e não este eloqüente "Eles voltaram!". Anunciava o professor Blass que "o fato é que sábado passado, ali pelas dez da manhã, vi um jacaré navegando pelas águas do canal, a meio caminho entre as duas pontes - a da Madre Benvenuta e a nova - pertinho da confluência onde eles costumavam acampar".

Eles, esclareça-se, eram os nove jacarés simultâneos que eu pessoalmente contei naquele mesmo local, exageros de ficcionista à parte, antes do início de funcionamento do majestoso centro comercial, este marco do progresso e do desenvolvimento da cidade - coitada.

(Amilcar Neves é escritor e autor, entre outros, do livro "Da Importância de Criar Mancuspias", crônicas)

Amilcar Neves
Enviado por Amilcar Neves em 05/03/2008
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