BIOGRAFIAS IMORTALIZADAS À MARGEM DA LITERATURA
A leitura do capítulo dedicado a Shakespeare e Cervantes no livro “Onde encontrar a sabedoria?” de Harold Bloom inspira o mergulho nas duas biografias e a releitura de algumas obras dos escritores que revolucionaram a dramaturgia inglesa e a literatura espanhola no início do século XVII. Inicio com Hamlet e As alegres matronas de Windsor, até encontrar o livro “As vidas de Miguel de Cervantes” de Andrés Trapiello na livraria.
As vidas de Cervantes se abrem com a possibilidade da ficção e da realidade. O criador de Dom Quixote nunca poderá ser visto distante de seus personagens. Sua vida é marcada por moinhos e gigantes, realizações e sonhos, anseios e frustrações, doações e ingratidões... E sua obra maior jamais poderá ser limitada a uma única interpretação. Dom Quixote é um caleidoscópio, reflexo fictício de inúmeras faces da realidade. Um espelho fiel para encontrar os contornos da humanidade.
Novo mergulho... Abro o livro de capa dura e encontro o cavalheiro e seu fiel escudeiro iluminados nas palavras de Cervantes.
Longe das páginas literárias, alguns personagens percorrem o mundo, tentando torná-lo mais justo e humano. Com discrição, não se apresentam como cavalheiros ou príncipes, não almejam ilhas, vinganças, glórias ou riquezas, não são tristes ou alegres... São lindas figuras quando relidas em suas circunstâncias. Pessoas que tinham tudo para se acomodarem nas escassas possibilidades e desistirem, mas acreditam na luta, investem na realidade e no sonho para transformar o amanhã em um renovado e estimulante capítulo.
Narrativas que certamente não encerrarão com a melancólica morte de Dom Quixote ou com o desaparecimento do Sancho Pança, com a tragédia de Hamlet ou com a farsa de Falstaff. Enredos que não serão objetos de ensaios literários ou de romances fictícios... São histórias que desfilam nas ruas, lidas nas entrelinhas do dia-a-dia e consagram os verdadeiros heróis do cotidiano.
Como Flávia, nascida há 24 anos como milhares de crianças brasileiras, privada dos cuidados básicos, sem estrutura familiar sólida ou amparo estatal suficiente, obrigada a ser responsável por si desde a tenra idade. Conheceu a solidão, o desespero, a violência e o abandono antes dos contos de fadas. Uma mulher que não viveu a infância em seu significado lúdico, mas aprendeu a reconhecer a solidez dos solos dos seus passos juvenis e a seguir em frente com maturidade apesar dos obstáculos. É o valor da conquista desenhado no sorriso, é a cicatriz de alguns tombos, é o olhar responsável para o próprio amanhã...
Em 2005, Flávia realizou dois sonhos: tornou-se dona de um salão de cabeleireiro e fez a festa que não teve aos oito anos com direito a vestido trapézio, sapato de boneca, brigadeiros e decoração de abelhas. Flávia continua anônima, não é reconhecida como o estereotipo de uma heroína, nem imortalizada por seus feitos ou loucurinhas, mas reconhece o valor da luta e valoriza os sonhos que pretende realizar em 2006.
“Onde encontrar a sabedoria?”