O relógio

Por: António Centeio

A minha esposa é uma mulher espectacular. Faz os possíveis para me dar o melhor, de maneira, que tenha tudo e nada me falte. Cuida tanto de mim, que até quando saio de casa, mira-me dos pés à cabeça para ver se estou nos trinques, como gosta de dizer. Nos dias que correm, duvido que existam esposas como a minha, razão para a estimar com unhas e dentes.

Não quer que eu ande adiantado nem atrasado, tanto na vida social como no tempo. O suficiente para que os relógios que uso, tenham que andar certos até ao milésimo de segundo. Se não a conhecesse e soubesse quem é, até pensaria que em vidas passadas deveria ter sido filha de algum relojoeiro suíço.

Já tive vários relógios de toda a espécie (só não tive um Rolex). Uns caros, outros baratos e outros de marca, mas nenhum mantinha as horas certinhas como a minha esposa gosta.

Uns atrasavam outros adiantavam e outros paravam sem avisar, cujas razões ou motivos técnicos nenhum entendido na matéria soube explicar ou justificar, já que os pareceres que eu obtinha nenhum era parecido. Até houve um curioso que se gabou de me dizer, que segundo ele, era o único entendido na cidade naquela marca, que tal causa mais não era dos que os “desequilíbrios nos ponteiros pelo magnetismo dos satélites que andam em órbita, visto que a máquina era composta por cristais de quartzo e daqui ser impossível a soberba máquina funcionar como foi determinado pelo seu criador” tal era a precisão da máquina, quando eu sabia que o relógio em causa não prestava para nada, porque tinha custado tuta-e-meia.

Uma teoria que me deixou pasmado pelos argumentos expostos, julgando eu que estaria a receber pareceres de um ser de outro planeta. Tal foi a linguagem erudita deste perito que tive de consultar outros dois concorrentes e especialistas nas artes dos maquinismos para marcar o tempo e as horas, se o opinativo alguma razão tinha. A resposta dos mesmos foi que a “ser verdade, quem poderia estar desequilibrado seria o único entendido, já que de relógios é que nada deveria perceber.

Uma carga de trabalhos quando um relógio pára no tempo sem nós darmos por isso no momento e julgarmos que está a funcionar. Os compromissos e a nossa cabeça desconjuntam-se logo para os neurónios andarem numa confusão de perder a cabeça.

Um dia, eu e minha esposa andávamos passeando e, quando menos esperávamos, o relógio que usava na altura, entendeu pifar. Nem para trás nem para diante. A solução era passarmos por uma relojoaria e vermos se o mal do dito seria algum sintoma doentio ou alguma birra. Nem uma coisa nem outra, porque nem sequer foi à consulta de quem entendia da matéria, pela simples razão de: estar na montra um belo exemplar bonito e tão barato – a preço de meia pataca – para logo recebê-lo como prenda, da minha santa mulher.

Depois em plena rua, ao vermos tão belo exemplar e de o contemplarmos à luz do dia, comentamos que nem nas lojas dos chineses, onde pouco falta para os relógios serem vendidos ao quilo, ser possível existir relógios como o que foi comprado.

Uma coisa é certa: o baratinho trabalhou e funcionou durante anos sem a mais pequena queixa, para ao contrário dos outros, alguns pagos a peso de ouro, nunca ter acusado qualquer anomalia e muito, menos atrasar ou adiantar.

Como nós, que julgamos ser eternos, a pilha desta relíquia oferecida foi-se alterando – julgava eu – até que falhou, para logo pensar que afinal: todos os marcadores de tempo, mais tarde ou mais cedo, vão desta para melhor.

Levado que foi a um estabelecimento do ramo, solicitei o parecer à entendida (daquelas que querem o ordenado ao fim do mês e pouco se preocupam se o negócio corre bem ou mal, porque afinal o negócio nem é delas) que atrás do balcão estava, qual seria o sintoma da doença. Mal-humorada que estava, concluiu logo à vista larga que o mal estava na “fraca potência da pilha”.

Pediu-me o objecto e levou-o para uma divisão do estabelecimento, situada a metros de distância, ficando eu, sem a ver como ao relógio. Passado poucos e rápidos minutos, aparece-me com o dito cujo e num ápice “ já está a funcionar, era da pilha”. Olho para tão mal humorada empregada, perguntando-lhe “ mas mudou a pilha ao relógio sem eu ver e como sei se a deficiência era da pilha ou se não colocou uma já usada?”. A zaragateira armou um chinfrim de tal ordem por lhe ter exposto um direito meu que fiquei a pensar: “os meus ouvidos devem ser compostos de cristais de quartzo, que com a má influência dos satélites estão desafinados”

A minha sorte foi que no momento e hora certa chegou quem paga o ordenado a tão competente subordinada. Informado da situação e analisada a questão, dedicou-lhe uma poética encenação de boas maneiras que a deixou um pouco corada com o aviso “ para a próxima leva uma carta de boas apresentações para o Centro de Emprego”.

O «Ourives» que após expressadas as devidas desculpas por tal simpatia de outrém, explicou-me que era um “conceituado especialista na matéria de metais preciosos e técnico com formação tirada no país que até conseguiu colocar cucos a cantar nos relógios”.

De maneira alguma duvidei de tão conhecedor na matéria, que na minha frente, se dignou desmontar o objecto para que eu próprio assistisse ao desmiolar da minuciosa e complicada matéria como pudesse apreciar tão minúsculas peças, ouvindo ao mesmo tempo palavras, de cujo dialecto nada percebi, tais eram os seus conhecimentos.

Falou bem e educadamente como me deu confiança no serviço prestado, por ele, ficando a saber que a patologia da doença “estava na quantidade do pó acumulado ao longo do tempo e no mau contacto da pilha” estando esta “ainda para durar”.

Quem ficou contente por continuar a usar a prenda que me deu, foi a minha esposa, que nada quer que me falte – se não existisse, tinha que ser inventada.

Afinal, o relógio até trabalha como uma máquina: nem para diante nem para trás. Por estas e por outras é que adoro a minha Xica, assim se chama, porque é o melhor diamante do mundo, para mim, claro.

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Musito
Enviado por Musito em 03/03/2008
Código do texto: T884996
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