O Velho Rosário

Já disseram que a vida é como um trem, que vai passando por uma infinidade de lugares e nós, os passageiros, uns vão aproveitando para tirar uma soneca, outros vão lendo, tão compenetrados na leitura, que não se importam com o que se passa ao seu lado. Outros, ainda, aproveitam para observar tudo pela janela do trem, e também estudar a personalidade dos seus companheiros de viagem. Eu me enquadro nestes últimos. Nesta pequena crônica, vou relatar alguma coisa da qual participei.

Devia ser o ano de 1953. Eu, com 19 anos, tinha muitos amigos mais novos e alguns mais velhos, e quase todos os Sábados, nós nos reuníamos para um encontro muito cordial no antigo Bar Rosário, no Largo do Rosário, em Campinas.

Já era um prédio velho onde funcionava o Bar, Restaurante e Café, e as suas pizzas eram as mais famosas na época.

Nós combinávamos de nos encontrar lá, às 22 horas. Cada um ia ou namorar ou ao cinema, mas na hora marcada, todos compareciam.

Devo descrever o Bar Rosário, para aqueles que não o conheceram. Ficava pegado a outro Bar, o Giovanetti, mas tinha uma atração muito maior, com suas prateleiras antigas, mas muito bem cuidadas, recheadas com os melhores vinhos e vermouths: Faísca, Mateus, Colares, Agulha, Gatão, Adriano Ramos Pinto, Bertolli, Ramanzzoti, Grand Jó, Constantino, Macieira e os Madeira R e M, sem contar a grande linha de produtos nacionais.

Não era muito grande, tinha só 6 mesas e isto, é o que o tornava mais aconchegante, mais familiar. Somente o Alemão atendia as mesas, e tinha de se desdobrar para atender a todos. O que fazia sempre alegre e muito cordial. Conhecia pelo nome os freqüentadores e tinha sempre uma palavra para sugerir ou orientar as pessoas. Enfim, um gentleman.

Lá no fundo, mas perto das mesas, ficava o forno à lenha, onde as pizzas eram assadas. E nos dias de inverno, as mesas mais próximas a ele eram as mais requisitadas. Assim, quantas noites de Sábado, de festas de Natal e de final de ano passamos lá.

Descrever uma reunião nossa no Rosário é muito simples. Chegávamos às 22 horas e logo alguma mesa nos era arranjada. Somente em festas nós reservávamos uma. Custava-nos muito pouco, por sermos clientes habituais, nos sábados normais. Pedíamos uma pizza para 4 e depois, conforme a disposição de todos, pedíamos outra. Sempre a tradicional Napolitana. Bebíamos com moderação cerveja ou nos dias frios, um vinho, geralmente nacional: Borgonha, Trapiche ou Rimarc Marcassa, todos muito bons. O estrangeiro fugia do nosso alcance monetário.

Enquanto íamos comendo, conversávamos sobre cinema, futebol ou namoradas. E, se ao sairmos do bar ainda tinha bondes, tomávamos o Bonde 1 ou 2, para a Vila Industrial. Os últimos partiam do centro às 23:30 horas, quase sempre vazios, a essa hora. Então, o 54 ou o Cardoso, que geralmente eram os cobradores, vinham sentar ao nosso lado para uma boa prosa. O 54 era um filho de italianos, muito falante, que conhecia a todos e Cardoso era um mineiro muito alegre e educado com os passageiros, e que nunca fugia a uma boa conversa.

Se passasse da meia noite, então íamos ao largo da Catedral pois sabíamos que o Sr Inácio Garcia lá estava com o seu carro, um Chevrolet Fleimaster, verde escuro ano 1946, a esperar os retardatários da noite. Era um espanhol muito bom, que segundo suas palavras, tinha vindo da Espanha em 1936, fugindo da ditadura de Franco, e nos afirmava que o governo de Getúlio Vargas havia sido água com açúcar perto da ditadura do seu país. Como na época não existia taxímetro, ele cobrava por pessoa, mas era muito camarada e gostava de negociar. Quantas vezes a corrida ficava pela metade do preço pedido inicialmente.

O Sr. Garcia era o último motorista a parar, à noite, naquele ponto as suas atividades. Como todo bom espanhol, era muito aberto ao diálogo. Embora não gostasse do ditador, era muito franco. Dizia ele ter 65 anos, com seus filhos todos formados em São Paulo e ficara viúvo há alguns anos. E o seu trabalho como motorista de praça enchia o vazio de sua vida, depois da partida de sua esposa. E ele nos afirmava, que uma das piores coisas do mundo era a solidão.

Como eu disse no início desta crônica, eu sou um passageiro muito especial no trem da vida. Sempre observo algo importante em pessoas que cruzam o meu caminho.

Certa vez estávamos sentados à volta de uma mesa no Rosário e a casa estava repleta, quando chegou um senhor, sobriamente vestido, devia ter uns 50 anos e pediu-nos se poderia se sentar ao nosso lado, para um copo de cerveja. Como concordamos, ele agradeceu e sentou-se. Alguns dos meus colegas devem ter pensado: é mais um fila bóia, tão comum nos bares daquela época. Mas eu, que sempre enxerguei um pouco além, vi que aquele homem tinha muito a contar e nada a esconder. Então ele disse: “..Gosto de conversar com jovens como vocês por que vocês têm um grande futuro pela frente, e talvez muito pouca coisa a lamentar do passado..” E continuando: “..Eu me chamo Frederico Werner, nasci em Hamburgo, Alemanha, mas sou brasileiro de corpo e alma. Meu pai era afinador de pianos e também dava aulas desse instrumento, lá na minha cidade. Vivíamos muito bem. Todos nós, eu e meus 3 irmãos éramos ainda crianças quando veio a Guerra de 1914, que durou até 1918. Guerra que ceifou milhares de alemães e, junto com eles, meu querido pai. Minha mãe, que já não tinha boa saúde, 1 ano depois faleceu. Ai, fomos morar com um tio, irmão dela, muito bom e sua esposa que nos queriam como filhos. Ele era relojoeiro e ourives. Eu estudava de manhã, e à tarde ia aprender o ofício do meu tio. Mas ai por volta de 1930, meu tio percebeu que a Alemanha caminhava, a passos largos, para outra Guerra. Então, vendeu tudo o que tínhamos em Hamburgo e viemos para o Brasil..” E para encurtar a história, ele disse: “..Casei-me com uma alemã, da qual tenho dois filhos, já formados. Os pais da minha esposa, assim que terminou a Guerra, quiseram voltar para a Alemanha e, como manda a antiga tradição germânica, os pais têm poderes sobre os filhos, mesmo casados. Então, ela os acompanhou de volta à pátria. Meus filhos não quiseram ir e eu também preferi ficar. Tenho uma grande loja de jóias e relógios, em São Paulo, que está nas mãos dos meus filhos, muito bem casados. E eu, vim à Campinas só para tratar da vista no Penido Burnier e acabei gostando tanto da cidade, que só vou a são Paulo para visitá-los. Moro num hotel aqui no centro. Estou aposentado mas as lojas da cidade que trabalham com jóias já me descobriram e volta e meia, sou chamado para algum serviço mais artístico, com ouro.” E levantou-se da mesa dizendo: “.. Muito agradecido por estes momentos que passei com vocês. E podem acreditar que não sou triste ou solitário, pois aquele que tem o poder de fazer amigos nunca está só.”. Os meus amigos, logo depois que o homem saiu, disseram-me: ..”que estavam arrependidos de não terem sido mais cordiais com ele, ao passo que você (eu) o havia recebido muito bem, e ele, apesar de ser muito educado, parecia que tudo o que contava era só para você.”. Mais vezes vimos o Frederico Werner no Rosário e em outras ocasiões esteve na nossa mesa. Não bebia quase nada, nem fumava, mas era uma pessoa muito especial. Ouvia o que nós falávamos, com muita atenção, e quando ele contava alguma passagem da sua vida, cativava a todos com suas lições de otimismo e solidariedade.

E para resumir esta crônica que me toca muito, demonstrei através dela, que não sou um passageiro comum no trem da vida. E até hoje, passados tantos anos, volto no tempo e ainda encontro com os meus colegas de Rosário. Vejo o Alemão, sempre alegre, trazendo uma pizza quentinha, ainda ouço as gargalhadas dos freqüentadores do Giovanetti, que ficava ao lado, e que achávamos que eram os donos do Bar. Vejo ainda no meu pensamento o Sr. Garcia e seu velho chevrolet. Parece que ainda escuto o sinal dos Bondes 1 e 2 e no seu estribo, o 54 ou o Cardoso, cortando as ruas do centro. Enfim, não posso esquecer do Sr. Frederico Werner, sempre educado e contagiando a todos que ele encontrava com suas lições de vida.

Enfim você, velho e querido Bar Rosário, foi página muito bonita da minha vida. E, quando o meu trem parar para mim, na última estação, poderei descer para uma outra morada e dizer que a viagem não foi em vão, pois fui colhendo ao longo dela, muita coisa boa e agradecer a Deus por ter me indicado os melhores companheiros para esta grande viagem. Sei que a saudade não vai trazê-los de volta, mas sempre estarão na minha memória

Laércio
Enviado por Laércio em 01/03/2008
Código do texto: T882983