OUTRO OLHAR

O dia estava escurecendo. Os meninos da salinha de pré-primário estavam se preparando para mais uma atividade que seria proposta naquele instante pela tia. Que delícia ser professora dessa turminha, ser ainda chamada de tia, vínculo muito estreito, laços dados e, temporariamente, atados, até o esquecimento dos anos levar as experiências vividas naquela salinha.

Todos sentadinhos em seus lugares. (Salinha de pré lembra tudo no diminutivo.) A tia, com folhas brancas na mão, já ia falar o que iriam fazer naquele momento em que um estrondo ensurdecedor estremeceu os olhares daqueles meninos. A luz apagou, o medo acendeu. Só a tia presente. Pai e mãe longe, em casa, no trabalho; não teriam colo. Os braços da tia não poderiam acolher todos dali.

A tia silenciou. Os meninos pareciam querer gritar, correr dali. Mas a tia olhou para eles, passava segurança. Eles se aquietaram. Esperaram o que a tia iria falar.

- Olhem! Prestem atenção quando vier outro trovão.

Distribuiu as folhas brancas, uma para cada um.

- Escutem com atenção cada vez que ouvirem o trovão. Fechem os olhos e depois desenhem no papel o que acharem que o barulho parece ser.

Os meninos, mais que depressa fecharam os olhos e embalaram na magia das palavras da tia. Aceitaram a brincadeira, o jogo, que apareceu na urgência de uma saída tranqüila para a situação.

Veio mais uma vez o estrondo! Fortíssimo! Eles, num silêncio de catedral, escutaram com atenção, depois irromperam num debate acirrado para ver quem tinha prestado mais atenção ao barulho.

- Eu acho que é um tantão de pedra caindo do morro!

- Eu acho que é um prédio explodindo!

- Eu acho que parece uma bomba!

As crianças iam falando e desenhando, falando e desenhando! Outro estrondo, outros desenhos, outra imaginação, outra magia. Vinha o silêncio do desenho, vinha o barulho, antes assustador, vinha a algazarra do combate da melhor percepção. Vinha a arte da improvisação.

A escola estava em polvorosa. A diretora estava passando de sala em sala para ver como estavam as coisas. A porta do prezinho estava fechada, o barulho dos outros alunos estava atrapalhando. Ela entrou na sala e parou, encantada. Nos corredores havia meninos e meninas chorando, querendo os pais, com medo, muito medo. Ali dentro havia uma turma de crianças, as mais novas da escola, trabalhando, transformando terror em criação. As duas, diretora e professora, trocaram olhares. A diretora sorriu um sorriso cúmplice, um sorriso de satisfação, um sorriso de tranqüilidade.

Os desenhos que foram feitos com a luz parca que vinha da janela se transformaram em quadrinhos de puro terror, terror externado pelas mãos daquelas crianças que aprenderam a ver a vida com outros olhos, outros ouvidos, outras mãos, ver a vida com a imaginação de uma professorinha de pré-escola, que nunca mais seria a mesma.