Série “Ditados na berlinda” 6: Dinheiro não traz felicidade?
Caminhava vagarosamente pela calçada sob o sol do meio dia quando o semáforo fechou. O rapaz de dentro do carro luzidio, ainda mais coruscante sob o efeito dos raios a pino, tinha a cara amarrada. O vidro com película escura estava totalmente aberto, nem sei bem por quê (já que o interior do carro e seus bancos de couro denunciavam a existência de um ar condicionado perfeito), o que me permitiu conferir seu semblante triste e amargurado. Eu diria enfezado, mas não poderia provar cientificamente a eventual prisão de ventre do rapaz atrás de seus grandes óculos escuros.
Repentinamente a moça do fusca que vinha vagarosamente atrás sem querer encostou levemente no pára-choque do bólido reluzente. O rapaz, agora muito mais que enfezado, saiu abruptamente do carro, batendo a porta com força. E nem esperou os pedidos de desculpas que a moça, envergonhada, reiterava. Disse-lhe alguns impropérios em voz alta, conferiu a irrepreensibilidade do pára-choque, olhou em seu relógio dourado e, com a mesma expressão contrariada, novamente entrou no carro. O semáforo voltou a fechar.
Cruzando a rua um carroceiro vinha cantando alto. Sem camisa, descalço, a calça rasgada na altura dos joelhos (uma bermuda customizada?), corria para dar velocidade à carroça que puxava, e depois elevava o corpo num salto e tirava os pés do chão. A carroça quase o fazia voar, o vento penteava seus cabelos e ele gritava “eeeeeeee”, sorrindo muito, ainda que carente de dentes; seu semblante me lembrou o de uma criança num balanço, excitada pela novidade. O seu exercício de equilíbrio e a sensação de velocidade que a carroça lhe dava pareciam deliciosos.
Assim que o semáforo abriu e o alegre carroceiro-cantor cruzou voando à sua frente, o rapaz do carro partiu, também em alta velocidade e cantando – os pneus.
Não, não vou aqui cair no lugar comum e fazer a apologia da pobreza, um clichê romântico, pois a miséria - a pobreza que fere a dignidade humana - pode ser qualquer coisa menos merecedora de elogios. Mas confesso que não pude deixar de imaginar a cena: o rapaz da bermuda customizada dentro do carrão, com ainda mais motivos para sorrir (ainda sem se importar com a carência de dentes), e o pobre homem de óculos escuros e relógio dourado puxando a carroça e descobrindo, finalmente, uma justificativa mais do que plausível para sua cara de poucos amigos.