Vida de boémio
Por:António Centeio
Vive algures no Barlavento algarvio. Não diz a ninguém - muito menos aos dois irmãos - onde está e o que faz. Apenas se sabe que vive na orla marítima. Não desempenha qualquer profissão por conta de outrém, a fim de poder ter tempo suficiente par tomar conta do filho da sua filha.
Uma partida que esta lhe fez, quando ainda jovem, entendeu iniciar uma viagem para o Sul a fim de começar a sua independência. Nunca se lembrou que iniciar uma vida aos dezasseis anos numa zona balnear, frequentada por todo o tipo de gente, era meio caminho para se meter numa alhada quando menos se espera. Tanto assim foi, que, quando deu por isso, começou a sentir que algo não ia bem com o seu corpo. Passado pouco tempo, disse a sua mãe que algumas más disposições andava sentindo. Partiu logo em socorro de quem mais lhe é querido. Não era preciso ser inteligente para saber que o nascimento de um rebento se aproximava e para quem estava sozinha e abandonada, mesmo de livre vontade, tudo podia acontecer.
O tempo passa para tudo se recompor e tudo se criar. O pior é depois as consequências advindas; as coisas que se sabem, quando o melhor era, nunca saber-se as suas origens.
Para quem sempre foi um mulher modesta e simples; que ocupava os dias costurando e desejando que as horas passassem depressa para que viesse o seu homem. Saber que a sua filha se tinha envolvido com um marginal, do qual engravidou, para mais tarde ter tido uma linda bebé, não foi coisa fácil.
Não pelas duas pessoas mais queridas, mas pela companhia e presença do parasita, que trabalhar não era com ele e, muito menos dormir de noite. As noites foram feitas para os desatinos e para as oportunidades de gamar algum artista descuidado nas longas ruas que as cidades algarvias tornam perigosas para quem não as conhece ou muito menos não sabe onde vão desembocar. Uma mulher séria e trabalhadora viu-se de um momento para o outro envolvida num novo ambiente, totalmente oposto aquele em que foi criada.
Adorava nas noites de Verão, acordar com a janela aberta para ouvir o cantar dos galos, vindo do fundo do seu quintal, situado em plena lezíria ribatejana; gostava de abrir o portão logo pela manhãzinha para de seguida regar com uma mangueira a frente da sua casa para pouco depois quem passasse pela rua visse e sentisse a fresquidão do passeio; sentia um imenso prazer quando comia sardinha assada em cima de uma fatia de pão caseiro e ver o molho a entranhar-se no interior do pão; em cima da mesa, que mais não era que uma velha tropeça de lavar roupa à mão, tinha o alguidar cheio de tomate, pepino e rodelas de cebola; nos fins das tardes, gostava de andar descalça com uma enxada na mão, abrindo os regos para que a água passasse e desse de beber às suas laranjeiras; gostava de outras coisas mais que só quem vive no campo sabe dar valor. Não gosta é de onde está, porque se separou do mundo em que vivia para entrar naquilo que não sabia existir. Uma separação que a levou a cortar definitivamente com quem sempre conviveu como ainda dos seus irmãos. Não que fizesse algo de errado, quando partiu para o Barlavento, mas sim pela vergonha de contar a quem gosta de saber tudo, a situação em que está como a vergonha das vergonhas de sua filha.
Aceita as coisas como são e está disposta a ajudar o fruto do seu fruto. O seu maior receio é de quem as rodeia, um maltrapilho que só exige dinheiro da sua filha. Quando esta o nega, uma forte carga de porrada leva em cima, mesmo que quem a criou, tenha que assistir. Se fala ou diz alguma coisa, como já disse uma vez, também sobra para ela.
O desgraçado e marafado, não satisfeito com a vida de boémio que leva, ainda quer que a mãe de sua filha vá trabalhar para uma casa de alterne onde ganhará mais e não se esforça tanto como quando lava pratos no restaurante em que trabalha, mesmo que, de madrugada se tenha que levantar, porque até a hora de desencardir o que os outros sujaram muita coisa há para fazer e organizar - oferta de mão de obra barata não falta, logo: quem precisa, tem que se sujeitar a quem mais exige e menos paga.
A iniciar-se na vida nocturna, sempre tem quem olhe por ela, como a leve e a traga. O adulador entende que as mulheres da noite, precisam todas de um homem que as proteja, caso contrário, sempre podem aparecer alguns maganões que as levem para o engate, dando a impressão que a profissão que quer para a sua companheira, outra não seja do que aquela julgada apenas para outras - pobre do homem quando apenas vê os defeitos dos outros. Triste sorte para quem não tinha necessidade de assistir a esta malfadada vida que havia-lhe de a presentear quando menos precisava e esperava.
Já não quer, enquanto for viva, voltar às bordas do Tejo. Foi habituada na seriedade e na palavra dada. Se quiserem que venha para onde nasceu, que a tragam dentro de um qualquer rectângulo de madeira, pesada ou leve, pouco lhe importa, porque para vergonhas, já lhe basta aquela que está a passar.
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(Portugal)