Um velho delator

Eu não sou uma pessoa matutina, nunca fui, mas cheguei ao local do alistamento militar às sete horas. Tudo em vão; fiquei com o último número: 51. A fila andava rápido, mas ainda assim tive de esperar duas horas para chegar a minha vez e depois fui obrigado a aguardar mais um pouco para passar pro outro atendente. Se você pensa que os obstáculos tinham acabado só porque eu estava sendo atendido, se engana. Um outro garoto que estava lá assinou na minha ficha por acidente e tiveram que imprimir outra depois de uma longa demora; além disso, precisei ir até a loteria para pagar a multa por ter atrasado um ano para me alistar e outros pequenos empecilhos.

Quando voltei já estava havendo outros atendimentos sem ser alistamento. Entrei na salinha para entregar a multa paga e um senhor aproximou-se com uma dúvida na mesa ao lado. Ele disse:

_Com licença, tem um rapaz que não se alistou até hoje e ele está com 21 anos. Eu posso denunciar ele? Como eu procedo?

A moça respondeu que era possível.

Eu logo o julguei: velho, cara de aposentado e de quem não faz nada na vida. Imaginei que, como era desocupado, preocupava-se demais com os outros e se metia onde não era chamado, por isso queria delatar o pobre coitado que não se alistara. Tudo uma fofoca. Mesmo que o cara esteja errado, o que aquele velho tinha a ver com a vida dele afinal? Primeiro fiquei indignado com aquela situação.

Com o desenrolar da conversa o homem comentou que morava na rocinha e outra hipótese surgiu em minha mente. Talvez o rapaz em questão fosse um bandido. Um soldado do tráfico que não descia o morro; Desconhecido ainda pela polícia. O idoso queria ficha-lo antes que fosse tarde, antes que se tornasse famoso. Nesse caso ele estaria realizando um ato de caridade e exercendo o seu papel de cidadão com a coragem que poucos teriam. Nesse momento compreendi a eloqüência do idoso ao ameaçar fazer a denúncia anônima.

Ele estava cansado de se sentir impotente diante do estado de sítio em vivia com seus vizinhos. Estava farto de ser controlado pela violência e intimado pelas armas.

Ainda formulei uma terceira teoria a caminho de casa. Quem sabe aquele senhor procurava liberdade; liberdade de um filho folgado e vagabundo que parasitava tudo que o pai havia suado para conseguir. Era pecado entregar um filho desse? Quando tudo o que o velho queria era poder desfrutar dos seus direitos batalhados. E, quem sabe, com isso até consertava aquele filho mulherengo, bêbado e sem rumo na vida; só esperando o último suspiro paterno para herdar o barraco humilde depois de atirar o pai na primeira cova rasa disponível. Dessa vez senti pena. Foi um sentimento benevolente diante dessa terceira idade encurralada, roubada e massacrada. Eles não têm o respeito que merecem, pelo contrário. Naquele instante pareceu-me que os mal-tratos que muitos idosos sofrem são muito injustos. E pior que perder a saúde, gradativamente, e ser abandonado; mesmo quando estão em companhia de alguém.

Acho que só o que eu queria saber é quem era o alvo da acusação senil daquela manhã. Ele merecia? Ele seria pego algum dia? Se eu fosse apostar diria que não, porque, se ele escapou por três anos, o que o impediria de fugir toda a vida?