Martinho
Por: António Centeio
Como todas as noites dormi como um anjo. Não tenho preocupações que me tirem o sono. Acordei com o barulho do despertador. Iniciei os preparos de higiene com a companhia do meu gato que tanto incomodou. Dava a sensação de que queria dizer-me qualquer coisa já que as suas atitudes não eram habituais. Seguidamente tomei o pequeno-almoço – sem este, o dia não me corre bem.
Quando saí de casa olhei para o Céu. Estava carregado de nuvens escuras. Indicavam que mais hora menos hora iria chover abundantemente. Quando o Céu está assim o meu coração fica triste e a minha alma sente uma melancolia enorme que não é usual nos outros dias. Fico sisudo e com pouca vontade de falar mas a minha inspiração fica mais estimulada fazendo com que as palavras corram como a água cristalina de um rio.
Algum tempo depois iniciei a viagem prevista. Além da distância não ser grande nem difícil ser o itinerário a companhia da chuva não me largou até ao local da chegada. Passados poucos quilómetros a companhia de relâmpagos e trovões fizeram com que não seguisse viagem nestas condições, ao ponto de, ter que parar a viatura e recolher-me na primeira área de serviço que apareceu no percurso. Tanta chuva que não via a estrada. Até parecia que do alcatrão vinha um fumo tão denso que me barrava a vista. Tive de esperar até que o tempo acalmasse já que nas «notícias» tinham informado algumas melhorias com pequenos intervalos.
Dentro do bar encostei-me aos longos vidros existentes olhando para o exterior. Foi quando vi uma criança completamente encharcada de água, andando para diante e para trás na frente do parque de estacionamento dos automóveis. Alguns condutores esperavam por uma abertura para poderem chegar até ao local onde já me encontrava. Para a criança, era-lhe indiferente o sitio onde estava como pouco se importava com que em cima dele caía.
Martinho, de seu nome, mais não era do que uma amostra de gente. Vestido com umas calças e uma camisa toda encharcada de água, cabelo comprido, correndo pela cara, mãos nos bolsos e olhando para as pedras da calçada.
No seu íntimo, deveria saber que estava a ser vistos pelas pessoas mas não demonstrava qualquer complexo. Deveria ser-lhe indiferente o que estivessem a dizer ou a pensar.
Quando o tempo ficou mais ameno e pude sair de onde estava, iniciei o curto percurso. Perguntei-lhe se estava à espera de alguém ou se queria uma boleia. Respondeu-me que queria «uma boleia até Coimbra». Fiquei satisfeito porque também para lá ia. Faria a viagem com companhia e sempre poderia falar um pouco. Não esperava por esta companhia mas era uma criança que mostrava ser carenciada, mas acima de tudo, um ser humano. As crianças abandonadas e carenciadas sempre mexeram nas profundezas da minha alma.
Iniciada a viagem, após uma pequena brandura vinda de cima, aos poucos, foi-me contando a sua história. Bem cedo e desde que se lembra, sua mãe prostituía-se levando para a sua própria cama homens que lhe deixavam na pouca roupa que o seu colchão tinha, um cheiro a ódio daquilo que davam à sua mãe mas que esta negava ao seu descendente. Seu pai, nunca soube quem foi. Sabia que no seu lugar estava como substituto alguém que se elevava nos fumos da perdição. Não fazia mais do que dormir em casa, de chular a mãe e bater-lhe quando menos esperava. Cenas chocantes e palavreado fora do comum eram habituais no ambiente em que vivia. Lembrou-se emocionado do dia em que a mãe, pressionada pelo companheiro, o prendeu durante cinco dias numa das poucas divisões que a casa tinha. Nem uma migalha ou uma gota de água lhe deram. Tudo por causa de ter respondido a uma pergunta do dito cujo. Este queria saber quantos homens tinham entrado em casa no fim-de-semana. Teve a infelicidade de lhe dizer quantos, originando assim que a mãe levasse uma carga de porrada porque as receitas não condiziam com as entradas. Valeu-lhe o seu silêncio por já não ter força para pedir comer. Abriram-lhe a porta porque o julgavam morto. Deitado que estava na sujidade do chão levou meia dúzia de tabefes, que comeu sem reclamar, mas que lhe valeu o resto do comer que havia do dia anterior. Um antro de podridão e um homem sem escrúpulos fazia parte do seu mundo.
Quando entrou para a escola primária, via nas outras crianças o que elas tinham e como eram. Começou a sentir dentro de si um temível ódio para com todos e ao mesmo tempo para com ninguém. Os seus amigos tinham aquilo que teria gostado de ter. Das poucas vezes que pediu, recebeu como resposta alguns estalos na cara e pontapés no seu frágil corpo. Alguém utilizou recursos para que fosse internado numa casa apropriada.
Estava satisfeito. As pessoas sorriam-lhe e abraçavam-no. Mas algumas, gostavam sempre de separar as distâncias e as fronteiras – afinal era uma criança internada. Bem dentro da sua alma sentia uma grande dor. Esta dor e separação doer-lhe-ia para sempre. São feridas que nunca sararão.
Na sua cara de tristeza notava a amargura da vida. Nos seus olhos, lágrimas que jamais deixarão de correr pela sua face. Sentia como ninguém que as pessoas que tomavam conta dele, mesmo sendo boas madrinhas o desprezavam e não o consideravam como as outras crianças. O preço injusto da sociedade e das pessoas que dela fazem parte, em que: para agradarem fazem-se de gentis pessoas quando na verdade só tem dentro de si manias de superioridade.
Chegado ao destino, abraçou-se a mim numa angústia comovedora. Pediu-me que nunca o esquecesse como também os seus irmãos – aqueles que tem e mais aqueles que um dia virão pelo caminho que já trilhou.
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