NASCI ABENÇOADO PELA IMPREVISIBILIDADE E PELA ESTATÍSTICA

Fui um filho planejado. O único dos três irmãos com este predicado. E isto não é pouco. Pergunte a seus pais se você foi ou não planejado. Você é um planeta ou um meteoro? A resposta poderá fazer diferença. No meu caso, minha própria mãe, solenemente, assim me disse. A gente estava conversando numa tarde ensolarada, ou talvez numa noite chuvosa... Bem, as condições climáticas e o período não importam. Por vezes, tenho medo de que este dia seja um sonho.

A única frase que lembro claramente desta conversa perdida no tempo foi essa do planejamento. Meus genitores em conluio de amor haviam me engendrado. Eu era muito esperado e desejado e, segundo fontes fidedignas, meu pai não se continha de alegria em ver seu varão macho babando, mamando ou chorando.

A força dessa revelação continua sendo um dos eventos mais avassaladores de minha vida. Engraçado que percebo a importância dela só agora. Na famosa hora da prosa mesmo, apenas devolvi um sorriso amarelo para mamãe. Por algum motivo que me foge à compreensão, silenciei e envergonhei-me.

Em alguns momentos da vida, geralmente difíceis, paramos para perguntarmo-nos o porquê de nascermos, qual nosso objetivo cósmico em viver aqui e outras sacrossantas e filosóficas questões sobre o fato de existirmos. Estava ali um verdadeiro motivo, um fluxo de acontecimentos relevantes, independentes de minha vontade, que resultaram nessa minha excêntrica e enigmática pessoa.

Àquela época, já não era mais criança é certo, tampouco homem formado, porque isso eu nunca fui. O fato é que só agora sinto-me verdadeiramente importante por conta da revelação. Por fim, apareceu algum sentido à minha estada nesta Terra. Porra, os caras queriam-me por aqui! Foram para a cama, determinados, mancomunados, cheios de tesão, com o firme propósito de me fabricar. E que bela trepada teria sido! Eu, euzinho aqui, não era fruto de acidente.

Definitivamente, não se tratava apenas de um espermatozóide distraído que escapou por uma camisinha furada. Existia um plano meticulosamente engendrado pelos dois com relação a mim. Velhos maquiavélicos! Danadinhos!

Que intenções passariam pela mente deste casal... Minha mãe queria-me oficial da marinha. Achava que eu ficaria “um gato” uniformizado de branco. Meu pai desejava que o ajudasse nos negócios. Não contentes em me arquitetarem ainda teciam em conjunto uma vida maravilhosa para mim, à minha revelia! Infinitos, os sonhos desta dupla. O que não esperavam é que “na teoria a prática fosse outra”.

Uma regra básica para quem planeja é saber que todo projeto têm seus furos, suas imprevisões. O problema é que as pessoas costumam não pensar num plano “B”. Sabe, algo do tipo “e se não der para fazer assim?” Ah, então a gente “faz assado”. Gente, o famoso plano “B”.

A sensação que tenho hoje sobre este episódio, com meus pais falecidos, é estranha. Sinto-me o próprio “soldado Ryan”. Volta e meia ressoa em minha caixa craniana a voz empedernida do Tom Hanks, falando ao próprio recruta Ryan (no filme, claro, na voz do dublador): - Faça com que tenha valido à pena!

Tanto sacrifício de minha mãe... Ministrava aulas em escola primária, de manhã e à tarde. Sem plano alternativo, arranjou-se como a vida deixava. Casou-se novamente anos depois que meu pai morreu, para dar segurança aos filhos ainda pequenos e desamparados. Quem sabe, na esperança de executar objetivos que foram interrompidos pela morte de meu pai. Aquelas idéias, que um dia chamara de Plano “A”, sub-título, “E foram felizes para sempre”.

Mas era só um remendo. Ela sabia. Duvido que tenha se unido a meu padrasto novamente por amor.

E meu pai? Sério e animado com a família que construia, meteu-se de corpo e alma no trabalho. Era um furacão. Nervoso, agitado e com úlcera, mesmo sendo homem novo, ia de cá para lá em busca da felicidade de seus entes mais queridos. Mas... com que sentido? Para que correr tanto? Vou ser repetitivo, mas pai... onde estava o plano “B”?

Acabou morrendo dois meses depois de meu nascimento em um acidente de avião, quando ia cuidar de negócios no Rio de Janeiro. Sendo assim, nunca o vi. Ele me amava, sem dúvidas, afinal, me desejou. Eu? O que poderia sentir por ele? Apenas essa estranha emoção que tenho quando vejo sua foto, de que foi esse o bigodudo que me obrou (dêem a “obrar” o sentido que quiserem).

Muitos que o conheciam dizem que seria um homem de sucesso. Era certo que ficaria rico, afirmam seus amigos. Sei apenas que quando morreu tinha uma fábrica de gaiolas. Certamente não me cheira como um negócio promissor, algo que faça alguém imaginar que seu pai seria um Bill Gates, tipo: - Olha, lá vai o Germano, o “Imperador das Gaiolas”! Multimilionário! – Ao contrário, tudo me remetia apenas à titica de galinha.

Espera aí, vamos falar sério: como um cara que morreu de desastre de avião, repetindo, “desastre de avião”, poderia ficar rico? É incompatível, captaram? Ele foi premiado com o infortúnio! Ninguém morre disso!

O certo é que nasci abençoado, pela imprevisibilidade e pela estatística.

Gê Muniz
Enviado por Gê Muniz em 26/02/2008
Reeditado em 26/02/2008
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