O BEM-TE-VI APAIXONADO E OS OUTROS

Diária e invariavelmente um bem-te-vi apaixonado me acorda às 04:40h da madrugada com seus apelos românticos/dramáticos à amada, que, tímida, após escutar os insistentes e prolongados gritos do seu enamorado, emite ingênuos, castos e quase inaudíveis piados, parecendo encontrar-se longe dele, mas como que autorizando-o a fazer-lhe a corte. Ah!, ele então, todo sassarico, recomeça e recrudesce seus arroubos entusiasmados, certamente, a partir daí, feliz pelo êxito da sedução, e dá a evidente impressão de estar desfiando seu canto bem próximo ao meu ouvido porque seus trinados parecem bombas intermitentes de alta potência. Aos poucos, felizmente, o bicho diminui a zoadeira, a fêmea o acolhe e, felizes, vão os dois para algum motel escondido por entre os galhos das árvores na cidade. Até chegar a tal ponto, porém, longos minutos se esvaem enquanto a calma do alvorecer é quebrada dessa maneira estridente pelo passarinho paquerador. Do alto do edifício onde moro brota em mim uma extrema vontade de abrir a janela e esbravejar contra esse bicho que incomoda aos outros por conta de sua paixão arrebatadora. Quem pode com os pássaros, no entanto? Deles são o espaço e as madrugadas, o amanhecer e as folhas que escondem seus ninhos. Vocês pensam que a provação óbviamente não apenas minha, mas de todos os habitantes do prédio, termina com os dois pombinhos voando apressados na direção do motel das aves? Nananinanão! E sabem por que? Exatamente às 05:30h, um vizinho liga seu velho buggy caindo aos pedaços e faz um barulho deveras ensurdecedor com o cansado motor de fusca que usa e torna a perturbar-me o indigitado sono. Escuto quando ele abre a garagem alugada no condomínio, liga a sucata ambulante e provoca o maior estrondo do novo dia embrião; depois, desliga a máquina enferrujada, fecha o portão, volta para o protótipo de monstrengo e torna a ligá-lo provocando novo troar, agora ouvido por todos da rua. E se manda, permanecendo no ar por tempo demais aquele som roufenho de tosse braba até desaparecer adiante. E eu fico lá, me remoendo de raiva. Já pensei em descer antes que ele saia e, educadamente portando um porrete estúpido cheio de pontas de prego, dizer-lhe poucas e boas e ameaçá-lo brandindo a arma, mas minha política de boa vizinhança e o desejo incontrolável de continuar deitado prevalecem.

Tá pensando que acabou e agora posso, finalmente, tentar, ao menos, cochilar em paz até a hora de levantar para ir trabalhar? Nada disso novamente, porque em pouco, e por fim, completando os amanheceres intranquilos e agitados que vão de segunda a sexta-feira no caso dos humanos, e a semana inteira no tocante ao bem-te-vi cheio de amor para dar, por volta das 06:45h uma kombi escolar sorrateira, dirigida por um indivíduo já maduro, as cãs aparecendo por cima de sua cabeça com entradas de calvície, surge repentina da esquina, o mocoronga do motorista buzinando feito um condenado em altíssimo som desde o dobrar da esquina até chegar - adivinhem onde! - exatamente no prédio onde resido; em estando defronte ao edifício, ele parece analisar a situação após três segundos sem pressionar a buzina e recomeça de forma mais vigorosa o buzinaço, levando o barulho arrasador do térreo ao último andar, penetrando pelas frestas das janelas e pelos buracos das fechaduras dos quartos e ferindo os ouvidos de todos os moradores do condomínio. Ao menos com este, certo dia, há tempos, conversei para reclamar do problema. Na oportunidade, perguntei qual a possibilidade de ele evitar abarulheira matutina, já que assustava todos da redondeza naquele horário inconveniente, se gostaria de ser abruptamente despertado por seus estardalhaço no começo da manhã, ele tartamudeou, pediu desculpas pelo exagero, etc e tal, essas coisas, meio constrangido. Expliquei a desnecessidade de tanta buzinada pois que a aluna usuária dos seus serviços poderia simplesmente esperar por ele no horário marcado e pronto, ninguém teria de suportar a ruidosa e malfada estripulia de sua kombi. Ele até que foi gentil em ouvir-me e prometeu deixar de agir como um ganhador da loteria ansioso para informar a todos a sua sorte através de gritos e macaquices.

Mas, qual o quê? Durou só alguns dias a trégua. Logo ele voltou, poucos dias depois, a repetir o barulho da buzina do mesmo jeito, apesar de, após alguns dias, deixar-me esperançoso de ver-me livre do seu buzinaço diário, pelo menos. Bem, o infortúnio permanece. Como não foi possível livrar-me em definitivo da odisséia matinal, procuro, agora, rir dos fatos incongruentes que não posso mudar. De modo que percebi ser a agrura cotidiana um bom e interessante tema para escrever esta crônica sobre amenidades. À guisa de desabafo, se não fora por outra razão mais plausível. Ou um motivo nada saudável, porém engraçado, para sorrir das coisas esquisitas presentes no dia-a-dia de qualquer um de todos nós. Alguém mais passa por esse tipo de aborrecimento por esse Brasil afora?

Gilbamar de Oliveira Bezerra
Enviado por Gilbamar de Oliveira Bezerra em 26/02/2008
Reeditado em 26/02/2008
Código do texto: T876527
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