O GATINHO MATEMÁTICO 1

O GATINHO MATEMÁTICO

Nelson Marzullo Tangerini

Contava-me Dinah Marzullo, minha mãe, filha da atriz Antônia Marzullo e ex-atriz da Cia. Alda Garrido, que, por volta de 1964, meu pai, Nestor Tangerini, tinha um projeto infantil: escrever um livro de poesias para crianças.

O projeto não foi avante porque ele ficou seriamente doente e veio a falecer de câncer pulmonar no dia 30 de janeiro de 1966.

Durante os 40 anos em que esteve viúva, Dinah vivia cantando a valsa Dona Felicidade, de Benedito Lacerda (música) e Nestor Tangerini (letra) ou declamando, para mim, todas as poesias de seu namorado, noivo e marido. E finalizava, supirando: “ – Seu pai foi um grande artista”.

Vivi, durante todo esse tempo, entre papéis – datilografados ou manuscritos – e lembranças.

Mas uma poesia, uma poesia infantil, meu pai não deixou datilografada ou manuscrita: a poesia do gatinho matemático, que Dinah vivia declamando.

Três meses após a morte de minha mãe, lembro-me da poesia e me pergunto indignado: “- Como não copiei a poesia do gatinho?!” e não me perdoava. “- Logo eu, fã de meu pai”.

No dia 16 de janeiro de 2006, resolvo arrumar um quarto que temos no quintal de nossa casa e eis que encontro a poesia do tal gatinho levado, escrita com a letra de minha mãe. Memorizada e escrita por ela exatamente na métrica: uma redondilha menor. O papel estava todo furado, mas as traças literárias resolveram respeitar o poeta. Deixaram a poesia intacta.

Ei-la:

“Tenho em casa um gatinho,

Inteligente e simpático;

É, sem nenhum exagero,

Formidável matemático:

Somo na pança os ratinhos,

Que subtrai a leves passos.

E multiplica uma louça

Que divide em mil pedaços”.

Quarenta anos após a morte de meu pai, ainda descubro o formidável poeta. Li a sua poesia lírica e satírica, lendo, paralelamente, Gregório de Matos, Bocage, Tolentino, Guerra Junqueiro, João Penha, entre outros, e descubro que Nestor Tangerini foi, sem sombra de dúvida, um dos maiores sonetistas satíricos da Língua Portuguesa. Minha mãe, autodidata, sem diploma algum, já havia me alertado quanto a isto. E foi justamente minha mãe quem me incentivou neste profundo estudo sobre a poesia tangeriniana.

Tangerini, certa vez, inconformado com a falta de sorte e de reconhecimento, chegou a arrumar tudo o que fizera para transforma-lo em cinzas. Dinah, porém, salvou a obra do marido descrente e guardou-ª são peças de teatro, recortes de jornais da época e anotações. A vida dura os perseguiu. Passaram por vários endereços; e Dinah sempre levava consigo uma caixa contendo a papelada de Nestor Tangerini.

Quando minha mãe faleceu, no dia 22 de outurbro de 2005, meu amigo Nelson Maia Schocair, também poeta, compositor e professor de Língua Portuguesa e Literatura, sabendo que vivo profundamente envolvido com a poesia, entendendo a minha dor e a importância de meus pais em minha vida, enviou-me um magnífico e-mail poético amenizando aquele momento tão difícil: “Sua mãe agora está valsando Dona felicidade com seu pai”.

Assim como a poesia de Fernando Pessoa foi descoberta anos após a sua morte, a poesia de Nestor Tangerini também acabará por ser descoberta, um dia. Dinah, que transformou toda a sua vida em poesia, passou para mim esta missão. Não penso em falhar. Enquanto meu coração bater, enquanto a chama da poesia teimar em arder dentro de mim, lutarei bravamente pela memória de meus pais.

O professor de Língua Portuguesa e Literatura que ora vos escreve, foi, certamente, influenciado por Nestor e Dinah, que derramaram poesia, este bálsamo dos deuses, em sua vida. E esta é a minha maneira de viver a vida. Acreditem: uma forma inteligente e leve de viver a vida.

Nelson Marzullo Tangerini, 52 anos, é escritor, jornalista, compositor, poeta, fotógrafo e professor de Língua Portuguesa e Literatura. É membro do Clube dos Escritores Piracicaba [ clube.escritores@uol.com.br ], onde ocupa a Cadeira 073 – Nestor Tangerini.

Nelson Marzullo Tangerini
Enviado por Nelson Marzullo Tangerini em 25/02/2008
Código do texto: T874626