MENTIRAS REAIS
Difícil saber quem não gostaria de viver um lindo conto de fadas. Nós os ouvimos desde a infância e mesmo anos e anos depois continuam a ser repetidos aos nossos filhos, netos, bisnetos...Se tornaram clássicos, imagens lindas, paisagens européias quem sabe, lições importantes, com vilões, heróis e mocinhas. O final é sempre feliz. Pena que nesse caso a vida não imita a arte. Ou será que imita?
Se considerarmos as cantigas de ninar como um curto conto de fadas cantado, que tem a intenção de fazer dormir, a primeira cantiga da nossa lembrança talvez, seja a Cuca. "Nana nenê, que a cuca vem pegar, papai foi na roça, mamãe no capinzal…", apesar de muito antiga ainda parece muito atual. Os portugueses as trouxeram para o nosso país e os escravos dos navios negreiros foram modificando algo de acordo com sua cultura, mas o fato é que realmente para seus filhos estavam trabalhando, estavam fora da senzala. E para os filhos dos patrões também vinham a calhar, pois os pais deles também estavam fora de casa, os pais administrando os negócios e as mães administrando a vida social. No fim todos estavam trabalhando e os filhos prontos para dormir cedo. O que se modifica para os dias de hoje, é que a empregada vai quando os pais chegam; cansados, estressados e encontram os filhos ainda cheios de energia. Para poder colocar em ordem o lar e depois descansar, logo as caras para os pimpolhos é daquelas, bem semelhantes a da Cuca, Bicho Papão, Boi da Cara Preta. Tornou-se real a cantiga de ninar, que convence qualquer criança a dormir por medo da cara feia dos pais. É a pressão de uma mentira real!
Depois dessa dramática alteração, vamos crescendo com uma pulga atrás da orelha, desconfiados de que outras mentiras se tornem reais assim. E se tornam mesmo! A cantiga de ninar foi só o começo, aí vem as estórias fantásticas, cenários maravilhosos e personagens interessantes. Todo sofrimento é recompensado por um final feliz e um grande aprendizado. Mas não é só isso que acabamos memorizando. Um dos clássicos mais contados é o do boneco de madeira que queria ser menino de verdade. Um sonho aparentemente impossível, como impossível seria um simples boneco ter sentimentos tão humanos. Afinal, para realizar seu sonho age de maneira egoísta, mente ao seu paternal criador além de fugir de casa pagando qualquer preço para ser um menino de carne e osso. Depois de muito errar, sofrer e arrepender-se tudo lhe é perdoado. Ainda que em desvantagem em relação a nós, seu sonho torna-se real. Nós rapidamente aprendemos a reverter o que a ele era desvantagem, ter suas mentiras desvendadas pelo nariz que cresce involuntariamente. Nosso teste transforma a difícil tarefa de dizer só a verdade, somente a verdade e nada além da verdade, na maneira mais simples de adultério: a mentira! De pequenos, ouvimos a estória e ao tentarmos esconder uma verdade que irá render um belo castigo, mentimos. Eureka! O nariz não cresceu; se tivesse crescido todos perceberiam a mentira, mas como o nariz não cresceu, concluímos logicamente que o que dissemos era verdade.
E assim, muitas mentiras reais vão se apossando de nossas vidas. Certa vez, um jovem, porém astuto disse sabiamente que todos temos um saco de mentiras que podemos usar ao nosso dispor. Contudo não podemos repetir as mentiras ou seremos pegos. A questão é que crescemos tão convencidos cujo o único sinal que denuncia uma mentira é o nariz, que acabamos por matar a vovó mais de uma vez. Adoecemos nossa mãe frequentemente. Quebramos ônibus, causamos acidentes de trânsito e até alteramos nossa condição física quando os outros recursos se esgotaram. Como se os únicos espertos a terem um saco de mentiras inéditas fossemos nós. Passamos à vida nos enganado, achando que o enganado é o outro que acredita inocentemente em nós. São razões que nos foram contadas por boas intenções, mas como nossas intenções natas provavelmente não são tão boas assim, do que nos foi contado apreendemos o que nos interessa. Em vez de pensar que é importante ter disciplina para dormir, nos apegamos ao medo do escuro e de cara feia, sendo que ambos nos acompanharam por toda a vida em situações diferentes as da infância. Acreditamos nas nossas próprias mentiras nos auto-iludindo quanto à realidade.
Esse círculo precisa ser quebrado em algum momento, por alguém, por nós mesmos até. De nada adiantará viver uma fantasia, um conto de fadas, quando vivemos uma vida real na qual não aceitamos nem mesmo o sofrimento que nos causamos por insistir no erro de mentir. Mentira seja ela pequena ou grande, não deixa de ser mentira. Não assumir uma falha por temer que se torne um erro de conseqüência leve ou pesada, não nos impedirá de estarmos errados. Azeda ilusão achar-nos sempre certos, verdadeiros, sem saber quem somos. O que é mais errado: ter falsas verdades como ideais de vida ou viver uma vida de mentiras reais?