O que uma médica recém-formada gostaria de ter dito no dia de sua formatura!

Se existem dias que entram para galeria dos momentos inesquecíveis, este certamente é um deles. O dia em que realizo um grande sonho fruto de um processo de 06 anos: me tornar médica! Hoje ao descer a escadaria do Teatro Guaíra senti o quanto mudei desde o primeiro dia da faculdade até o dia de hoje. Alguns mitos que apresentava nos primeiros dias de aula caíram, mas certamente a vontade de fazer bem ao próximo ainda é a minha motivação como nova médica.

Em alguns dias possuirei o meu registros no conselho regional de medicina, o CRM, e o sonhado carimbo. O pensamento que me vem à mente em um momento como este é: estou pronta? Estudei muito; li muito; acompanhei clínicas em Curitiba, São Paulo e até nos Estados Unidos; participei de ambulatórios e cirurgias... Claro que seria tomada por insegurança! Mas sei que se a medicina é a ciência das verdades transitórias, estou assumindo o compromisso de estudar até o último dia de minha carreira como médica. Já dizia Da Vinci: “A sabedoria é filha da experiência”. Muito ainda terei de aprender com meus mestres...

Mais preocupante é nos darmos conta a que cenário nacional somos hoje lançados. Há 100 milhões de brasileiros que dependem exclusivamente dos serviços públicos da saúde. Números recentes do IBGE apontam 53 milhões de brasileiros na linha da pobreza e 21 milhões que sobrevivem em miséria absoluta, abandonados à própria sorte. Os serviços públicos e privados de saúde passam por um momento de descrédito por parte da população que vai de posto em posto, de consultório em consultório em busca de um direito que lhe seria garantido pela constituição. O sucateamento dos serviços públicos é infelizmente uma realidade. Muitos de meus colegas irão trabalhar sentindo-se de mãos atadas por terem recebido um conhecimento durante a graduação que não poderá ser aplicado por falta de recursos.

Em pronunciamento da Associação Médica Brasileira afirmou-se: “O país carece de uma política de saúde pública real e verdadeira, "vacinada" contra as ingerências político-partidárias, "alimentada" com recursos suficientes e, principalmente com criatividade. Em sendo eficiente e democrática permitirá, ao mesmo tempo, qualidade e justiça social.” Eu sei que não seremos nós que mudaremos o Brasil, mas depois de tantas discussões durante faculdade, certamente estamos munidos de muita força de vontade, o que acredito ser um bom começo.

Nosso país é campeão em número de escolas médicas. Nos EUA há 125 escolas para mais de 295 milhões de habitantes, contra 156 escolas no Brasil para 186 milhões de habitantes. São formados 13690 novos médicos por ano, só no Paraná 666. O governo não consegue frear a formação de novos cursos e nem todos eles estão capacitados para a formação médica. A faculdade de medicina da PUC completou agora 50 anos de existência, foi a 4ª universidade privada a ser criada no país.

O retardo do primeiro contato do estudante com o paciente distancia as matérias de base da prática clínica. Muitos acreditam que a solução seria um método de ensino capaz de motivar o aluno a estudar e solucionar problemas reais da prática médica. O PBL (Problem-Based Learning) é um método utilizado por universidades do mundo todo como a Harvard, com o intuito de corrigir as falhas do método tradicional de ensino, formando um médico mais crítico, mais preparado e mais humano. Ele foi implantado em nossa universidade há quase uma década e vem constantemente sofrendo reformulações para sua melhoria. Com o paciente como substrato para o desenvolvimento do conhecimento médico, o PBL acaba por motivar os alunos a buscar respostas em livros e artigos científicos. O aluno desde o 1º ano sente-se como médico do paciente e a enxerga um porquê para o aprendizado. Uma vez que o estudo torna-se mais próximo do paciente ele passa a não mais tratar a doença, e sim o doente.

Se a medicina é a ciência das verdades transitórias, a relação médico-paciente é perene. As queixas cada vez mais freqüentes no que diz respeito à qualidade de atendimento demonstram a formação de um abismo entre o médico e o paciente. De um lado o paciente, cada vez mais informado, que está sofrendo e busca no médico um apoio, alguém que o escute. Do outro o médico correndo contra o relógio devido ao sucateamento do sistema de saúde pública. O paciente deseja exames e o médico os apresenta, algumas vezes sem levantar os olhos a ele. O paciente sai insatisfeito com o atendimento e o médico muitas vezes frustrado e descrente da eficácia do tratamento.

A ponte para unir médicos e pacientes é construída durante a formação médica. Temas como humanização, empatia, relação médico-paciente ficam esquecidos num número crescente de escolas médicas diante de tanta literatura científica a ser ensinada em apenas 06 anos de currículo médico. Em nossa universidade estes temas foram abordados exaustivamente, apresentando a relação médico-paciente ao estudante desde o primeiro ano da faculdade.

Faço uso de trechos da Oração do Médico atribuída a Maimônides que viveu entre 1135 a 1204 e que permanece ainda muito atual:

“Que o amor à minha arte aja em mim o tempo todo, que nunca a avareza, a mesquinhez, nem a sede pela glória ou por uma grande reputação estejam em minha mente... eles poderiam facilmente enganar-me e fazer-me esquecer meu elevado objetivo de fazer bem a teus filhos. Concede-me força de coração e de mente, para que ambos possam estar prontos para servir a ricos e pobres, os bons e os perversos, amigos e inimigos, e que eu jamais enxergue num paciente algo mais além de um irmão que sofre. Se médicos mais instruídos que eu desejarem me aconselhar inspira-me com confiança e obediência para reconhecê-los, pois notável é o estudo da ciência... Que eu seja moderado em tudo, exceto no conhecimento desta ciência; quanto a isso que eu seja insaciável; concede-me a força e a oportunidade de sempre corrigir o que adquiri...pois o conhecimento é ilimitado...Hoje ele pode descobrir seus erros de ontem, e amanhã obter nova luz sobre aquilo que pensa de si mesmo. Deus, Tu me designaste para cuidar da vida e da morte da Tua criatura; aqui estou, pronto para minha vocação.”

Guimarães Rosa durante sua formatura de medicina citou Montaigne “Ciência sem consciência não é senão a morte da alma” e o corrigiu afirmando que na medicina “Ciência sem consciência e sem amor não é senão a morte de alma.”

Que façamos uma medicina com consciência e com amor pelo paciente para que um dia nossos pais, familiares, amigos e professores se orgulhem de nós...