O homem que passava as tardes no cemitério
Por: António Centeio
Apenas tinha dez anos quando partiu, acompanhado de seus pais para a Venezuela. Estes foram em busca de melhores dias porque não encontravam no seu país as melhorias que alguns começavam a mostrar depois de alguns anos noutros países, quer mais avançados quer com melhores condições. Caracas era um mundo novo, dando na altura aquilo quer todos queriam e procuravam: melhores condições de vida.
Gaspar, assim se chamava, aqui cresceu e se fez homem como lá casou e teve dois filhos que sempre foram a sua razão de viver. Só regressou a Portugal, de vez, quando sua esposa faleceu, tendo sido sepultada na localidade do marido. Pouco lhe valeu as dezenas de anos ausente e distante das origens.
De tanta labuta, apenas conseguiu amealhar “meia dúzia de patacas” que lhe deu apenas para “mandar construir uma modesta “casita de dois andares” na sua terra de nascimento “. Um para arrendar, cuja receita se juntaria ao pouco que possuía e o outro para gozar o resto do tempo junto da sua companheira”. Do último não teve esse privilégio.
Mesmo com apenas uma dezena de anos nunca se esqueceu das suas raízes. Setenta anos esteve separado da terra que o viu nascer como de quem fez parte da sua infância e do melhor período da sua vida, a época escolar. Quando regressou tudo tinha mudado como muitos dos petizes que se lembrava já não existiam. Outros nunca foram localizados. Tudo se tinha transformado. Até para aqueles, quando do seu regresso às origens, nem tão pouco o conheciam ou se lembravam dele.
Um ou outro, faziam lhe lembrar “o tempo passou e tudo foi esquecido ” deixando na sua avançada idade lembranças de um passado do qual nunca se conseguiu separar. Em vez de viver o presente remexia naquilo que deveria ser as “memórias do tempo”.
No passar dos anos e na ausência dos seus mais queridos, mais do que nunca, precisava de ocupar o tempo de maneira que algo de novo lhe surgisse no horizonte. Nunca conseguiu. Então, como fazer reviver aquilo que já não existia? Passou a ocupar o tempo passeando na sua velha bicicleta, ora para cima ora para baixo a fim de fazer as suas “visitas obrigatórias”.
Chovesse ou fizesse Sol, as manhãs do dia, eram passadas na entrada das “urgências do hospital” vendo quem chegava ou saía. Quando alguma ambulância se aproximava, apertava o seu casaco, que utilizava diariamente, para ver quem precisava de cuidados e para ver com os seus próprios olhos o estado do doente ou ferido. Se por alguma razão, o sinistrado apresentava a seus olhos alguma mazela estranha, perguntava a quem o tinha trazido, as informações que o pudesse elucidar como das razões do sucedido. Apenas abandonava o hospital quando a “hora da bucha” se aproximava. Se pelo caminho encontrasse alguém a quem pudesse descrever resumidamente tudo o que soube e assistiu, as informações seriam prestadas ao detalhe, se não encontrasse, tudo continuaria como nada tivesse acontecido. Um homem estranho mas bem-educado e amigo de cumprimentar todo aquele com quem se cruzasse, tirando a cada um, o boné que lhe cobria a calvície numa de “educação e respeito para com o terceiro”.
De tarde, logo que fosse aberto o portão do cemitério, que ficava situado ao fundo da rua do hospital, Gaspar entrava no local do “fim de tudo” para começar a visitar campa por campa, como em cada uma, se voltava de frente, tirando primeiro o boné a fim de fazer a vénia como sinal de respeito a quem ali estava sepultado. Tivesse-o conhecido ou não, merecia dele a respectiva deferência.
Assim ocupava as tardes. A sua presença notava-se em todos os funerais que se realizassem e à família do falecido derretia-se em salamaleques como sempre tivesse conhecido quem já ”deixou fazer parte do mundo dos vivos”.
Tudo anotava numa “velha agenda de bolso” para que a sua “fraca memória” não o viesse a “atraiçoar quando menos esperasse”. O suficiente para ao longo do tempo, saber melhor do que o coveiro onde se “encontra enterrado fulano ou beltrano”. Se alguém perguntasse ao empregado “onde está a campa de….”. o funcionário para não se incomodar e, muito menos ter que ir consultar o livro de registos, indicava “aquele senhor acolá dá-lhe a resposta do que quer saber”.
Foi entre duas campas do terreno tantas vezes calcorreado por Gaspar que numa tarde quente e abafada lhe deu “qualquer coisa” para cair repentinamente inanimado no chão. O coveiro que apenas gostava de sair do seu refugio quando a tal fosse obrigado, mesmo assim sempre de má vontade ou, no “Dia dos Finados” que se colocava à entrada do espaço com a mão estendida a fim de receber a gratificação daquilo que não fazia, porque bastante astuto que era, gostava de dizer aos familiares dos falecidos “dou sempre uma olhadela por aquilo que é seu” só ao fim de três dias é que deu pela falta do “companheiro de silêncio” para o encontrar onde menos esperava.
O funeral do Gaspar considerado por muitos como “Maluco do Cemitério” teve como acompanhantes o “cangalheiro e seus ajudantes” e o respectivo coveiro que neste dia e para este funeral contou com a ajuda de um novo aprendiz.