Série "Ditados na berlinda" 5: Quem vê cara não vê coração?

Perto de minha casa andava um senhor maltrapilho. Caminhava pela calçada com um pedaço de pau na mão, fumando e segurando um cão vira-latas preto, grande, feioso e desengonçado, pela coleira. Dizia que tinha "cruza" com pastor alemão. O homem, quando havia alguém por perto, puxava o animal energicamente para si - como para garantir que ele não fosse sair correndo e morder a primeira vítima que passasse à sua frente - e chamava-o em voz alta de Leão.

Esse senhor muitas vezes se sentava em frente ao portão de nossa casa. Usava umas calças velhas quase sempre caindo, camisas rotas e sujas de graxa; e suas mãos não raro também estavam assim. Seus dedos eram escuros e cheio de cicatrizes, resquícios do manuseio de máquinas e do consumo constante de cigarro. Nos dedos mindinhos, as unhas eram longas e escurecidas. Às vezes também o rosto tinha graxa ou tinta, e seus óculos, emendados com fita crepe, tinham as lentes embaçadas por gordurosas e antigas impressões digitais. Nos cabelos grisalhos e encaracolados muitas vezes podia-se ver brilhar algumas limalhas de ferro, resíduos de trabalho num torno. Às vezes envergava um velho e seboso chapéu de palha.

Do portão para dentro havia meu pai. Estudou até o equivalente à quinta série, mas tinha muitas habilidades, em especial com as mãos. Virginiano, era detalhista e metódico, e ao mesmo tempo em que tinha conhecimentos técnicos de eletrônica, eletricidade, mecânica, química e tudo o mais que posso me lembrar, era um artesão habilidoso, fotografava muitíssimo bem, desenhava lindamente e amava de forma quase devota a natureza. Era um artista que, um dia, apaixonado pela belíssima mulher que minha mãe havia sido, ensaiou também alguns passos na poesia. Acrósticos, trovas, sonetos - um caderno cheio de textos românticos escritos com sua caligrafia caprichada, com uma antiga caneta tinteiro...

Se meu pai tivesse tido oportunidade de estudar, não sei o que teria sido. Engenheiro, físico, químico, fotógrafo, biólogo, tantas coisas... Cinegrafista foi o que ele foi. Filmava para os noticiários televisivos na época em que ainda era necessário revelar os filmes antes de exibi-los. Se tivesse consciência hoje, adoraria conhecer as câmeras digitais e certamente teria muita habilidade com a informática. Pois dominava, há dez anos atrás – e já contando com mais de setenta anos de idade - a linguagem dos cartões eletrônicos, suas senhas e seus caixas automáticos.

Meu pai, para desespero total da esposa caprichosa – minha mãe, a guardiã da imagem da família - era o senhor maltrapilho que fumava enquanto vagava pela calçada. O pedaço de pau que ele segurava na mão era para defender o cachorro, que, apesar de grande, não sabia morder: se ameaçado, defendia-se dando focinhadas. Foi um dos meus cães da infância, e não se chamava Leão, mas sim Xuxu. Assim mesmo, com X.