PUR ELLISE

Nascera num dia dezesseis do último mês do ano. Era uma menina magrinha, de cabelos louros e pele muito clara. Os olhos azuis de uma beleza emocionante. O parto foi tão rápido que ela nem chorou. O peito delicado arfava alvo nas contrações sem som. A mãe recebeu a filha sobre o corpo suado e feliz. Elisa era linda.

Em casa, passados alguns dias, não se ouvia o seu choro. O médico transformou em certeza a desconfiança; Elisa não ouvia e nem falava.

Pobre Elisa, diziam todos.

A menina crescia em graça, beleza e sensibilidade, “ouvindo” pelos lábios sibilantes dos condoídos, sempre aquele “pobre Elisa” . Entendia todas as coisas como se lesse pensamentos. Suas artes de criança superavam a de todas as demais. Elisa sempre inovava, sempre despertava espanto em tudo que fazia. Um dia, aos 4 anos, encontrou algumas tintas no chão do quarto de pintura da mãe e com os dedinhos, pintou na parede branca uma colorida Abaporu da Tarsila, com graciosos e delicados pés de gazela. Depois assinou: Elisa, 1928. A mãe ficou maravilhada com a pintura e intrigada com a data. Aos cinco anos adquiriu um estilo próprio e pintava quadros maravilhosos, que eram vendidos mesmo antes de concluídos. Os testes de inteligência de Elisa mostravam-na uma pessoa muito especial. O sucesso com a pintura transformou a menina em uma pintora conhecida internacionalmente.

Aos sete anos não pintava mais. Por mais que os pais pedissem e o médico tentasse entender, a alma da menina estava vazia. Ela tornou-se triste.

Pobre Elisa

Como lembrança das telas, ficaram as marcas. Os dedos da sua mão direita, coloriram-se, um de cada cor. Elisa pensava:

- Um dia ainda hei de colorir um arco-íris no meu céu.

Na escola ela era a melhor aluna. Os colegas, ainda que dela gostassem, do alto das suas cruéis verdades infantis, dela zombavam e a agrediam.

Pobre Elisa

Aos onze anos descobriu o piano, fechado e mudo no canto da sala. Eram 9 horas do dia 16 de dezembro, dia do seu aniversário. Ela levantou a tampa do piano, sentou-se no banquinho e suas mãos deslizaram sobre o teclado tirando o som maravilhoso da sonata nº 5 de Beethoven. No andar de cima seus pais assustaram-se, desceram as escada aos pulos, corações aos saltos. Estupefatos viram Elisa tocando a sonata intercalando-a com alguns acordes da Nona. Sinfonia, num arranjo próprio e quase impossível de interpretar. Como podia Elisa, tão tímida, tão surda, tocar de forma tão correta um instrumento que nunca tocara antes?!

Igual à época das pinturas, Elisa não parava de tocar. Tornou-se conhecida, requisitada. Produtores, empresários, shows, viagens pelo mundo, recitais nos espaços mais exigentes, entrevistas, aparições em televisão, uma maratona cansativa que cada vez mais deixava Elisa eufórica e feliz. “Ouvia”, no entanto, em muitos idiomas: pobre Elisa.

Um dia, aos 18 anos, parou de tocar. Passava os dias na varanda da casa, lendo livros. Lia livros e livros com uma rapidez impressionante e por gestos e escritos discutia com mãe o estilo dos autores, e escrevia comentários perfeitos sobre cada um dos livros lido.

Um dia, o celular do seu pai tocou uma musiquinha no perfil que ele personalizara. Ela virou-se para o celular que tocava às suas costas e apontou para o mesmo, pegou o aparelho deslumbrada e o entregou ao pai. Será que Elisa estava ouvindo, pensaram eles.?! Ligaram várias vezes e toda vez que a campainha do celular tocava, ela parecia escutar. Será que ela estaria ouvindo?! Alguns dias depois, a “moto do gás” passou tocando a mesma musiquinha do celular. Elisa disparou para a varanda e, maravilhada, acenando para o moto boy, gritou para a mãe, com uma voz suave e compassada:

- Mãe, é a Pur Ellise do Beethoven.