O canto do galo urbano

 

Na rua onde moro, com Janaína, minha mulher e meu amor, entre modernos prédios de dez pavimentos, num dos bairros elegantes da cidade, mora também um galo cantador. É dele o privilégio de anunciar o dia, como acontece nas fazendas, nos sítios, nas chácaras, tão distantes da agitação urbana, tão mais propícios a esses encantos naturais. É dele o privilégio de viver, num bem montado galinheiro, dividindo essa regalia com o assédio, o afago de três fêmeas.

Nós e o galo temos endereço certo. Ele, no final da área de lazer e grama, na creche Conviver. Nós, no aconchego de um apartamento, de onde podemos vê-lo, chegando, apenas, na sacada. Ambos, na Rua dos Sabiás.

Os galos que cantam nas fazendas, nos sítios, nas chácaras, têm o dom de anunciar o dia, quando a barra do dia vem surgindo no horizonte, bem cedinho da manhã; quando a alvorada começa a realçar as formas das coisas, iluminando-as com os primeiros raios do sol.

O galo que canta na rua onde moramos, no entanto, parece ter pressa em ver nascer o dia, em ver passar as horas, em encurtar o sono dos que dormem, em torno de seu canto, anunciando uma alvorada que ainda não veio, que ainda tardará pelo curso das horas, mas que não deixará de vir. O galo da rua onde moramos, quase sempre, canta às quatro e trinta da manhã. Ele é pontual. Não costuma atrasar, em seu canto alvissareiro.

O galo que canta na rua onde moramos, canta para o bairro inteiro, acordando a vizinhança, partilhando a insônia dos notívagos, abreviando o sono dos justos, rompendo o silêncio da madrugada soturna, na ânsia de prazeres e pecados.

Mas, o galo de nossa rua não canta sozinho. Um galo, para quem já ouviu um galo cantar, onde quer que um galo cante, jamais canta sozinho. Há, sempre, um outro galo que responde, perto ou longe. Distante, cantará sempre, um outro galo, mais distante ainda. E os cantos repetidos dos galos, nas manhãs ou nas tardes, são gestos de cumplicidade, de resposta, de uma certa aquiescência a propósitos, a propostas que só os galos podem entender. 

Quando ele canta, e reafirma o canto, como um desafio, um galo, distante, aceita o convite e repete o canto, quase como um eco. E o dueto, alternado, toma conta da madrugada, envolvendo o bairro inteiro, a partir da rua onde nasce e onde esplende, em que pese a escuridão.

Em verdade, um galo parece cantar para outro galo ouvir e responder, para outro galo imitar, aprender a cantar, numa espécie de desafio expresso, onde o canto mais alto, mais compassado, mais estridente, possa ser uma espécie de charme e sedução para atrair fêmeas, assegurar domínio ou mando de espaço territorial.

Um canto de galo na madrugada, à moda do galo de nossa rua, todavia, parece estar além do desafio a outro galo, de uma espécie de aviso sobre quem domina o espaço onde ele habita, sobre quem manda no galinheiro.

O canto parece mais um brado, um alerta para o dia que vai amanhecer. Porque o dia que vai amanhecer, muito além do canto do galo, é um desafio de intensas e intermináveis melodias, de renovados cantos, de ecos e aparentes repetições, e deve nos sacudir, nos despertar como o canto dos galos.

Sempre me intrigou o canto dos galos. A beleza sonora de seu toque de alvorecer, seus enfáticos e repetidos dobrados. Sempre me intrigou pela característica melódica de suas notas, pela pontualidade de seus horários, pela cumplicidade de outros galos e outros cantos, que vão se completando, intermitentes, como se fosse um canto só.

Um galo, então, pode transmitir uma mensagem a outros galos, distantes. O mais próximo vai levando ao mais longínquo, numa festa de tons e semitons, repetidos, cheios de sonoridade, encanto e magia.

O que faz um galo cantar, sempre, às mesmas horas do dia, no curso de sua existência? O que faz o galo cantar, quase sempre, às seis horas da manhã, anunciando o dia que vai acontecer? O que leva um galo a cantar, ainda, depois do almoço, na hora da sesta, nas fazendas, nas chácaras, nos sítios, onde quer que ele esteja? O que faz um galo cantar, de forma diferente, nessas horas distintas?

Sim, porque o canto do galo que anuncia o dia que alvorece, não é o mesmo  canto, do mesmo galo, que consagra a hora da sesta. O canto do alvorecer é forte, vibrante e curto. Tem ar de trombeta, saudando a alvorada. O canto que consagra a sesta é nostálgico, longo, morno, dolente. Basta sentir os dois para perceber essas nuances, em seus perfis.

O galo que canta na rua onde moramos, no entanto, não é dado ao canto de depois do almoço. Posso entender que ele não é chegado a essa nostalgia, preferindo ser arauto da manhã. Mas, nem por isso deixa de ser nostálgico, também, cantando, vez por outra, às três horas da tarde.

O galo que canta na rua onde moramos é um privilégio, um presente que o pessoal da creche nos deu, a todos, da rua, do bairro, da cidade inteira. O privilégio de encontrar, num espaço essencialmente urbano, a realidade telúrica dessa maravilha da vida rural, essência pura de nossas vidas. Encontro com nossas referências, com nosso passado, com as sutilezas de nossa alma, de nosso espírito, para nos enternecer, nos acordar, e para acordar e educar as crianças que, com o galo, convivem, todas as manhãs de atividades escolares.

O canto do galo de nossa rua deve amanhecer em cada um de nós, como uma esperança, como um toque de sentido para o dia que amanhece. O dia que amanhece deve ser a semeadura do galo que canta, fora e dentro de nós.

 



Ivan Sarney
Enviado por Ivan Sarney em 20/02/2008
Reeditado em 21/04/2008
Código do texto: T868372
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