Uma questão de horas
UMA QUESTÃO DE HORAS
(crônica publicada no jornal "Diário Catarinense" de 20.02.2008)
Metódico ao extremo, irrita-lhe sobremaneira qualquer perturbação da sua rotina estabelecida e cultivada com intransigência. Evidente que casamento é algo que nunca lhe passou pela cabeça experimentar: nem o casamento tradicional, com padre e juiz de paz, muito menos um casamento aberto, em que os dois se fazem diversos ao sabor da libido; nem a coabitação com uma noiva, namorada, amiga ou prima, sem testemunhas e papel passado, muito menos um casamento moderno, em que cada qual dos cônjuges vive em sua própria casa; nem o casamento formal de poucas semanas de duração, celebrado com festa de coluna social e tão habitual nos dias que correm, muito menos um acasalamento casual e fortuito que vare o sono da madrugada, levando a um inesperado despertar com gente deitada ao seu lado, na cama; nem a sensação inebriante de...
- Morrer virgem, então? - o irmão e alguns colegas de trabalho não perdem a oportunidade de provocá-lo.
- Só estou lhes dizendo que me posiciono contra qualquer forma de matrimônio, por mais dissimulada que seja. Nada falo sobre paternidade irresponsável e, no geral, desconhecida - responde ambiguamente o Dr. Fernandes com o seu costumeiro bom humor social.
Dr. Fernando Fernández Fernandes, filho de paraguaia com brasileiro. A mãe dizia que sua avó ou bisavó esteve presente à Batalha do Avaí, na Guerra do Paraguai; o pai, cuidadoso, exigiu do escrevente juramentado que observasse o acento no "a" e o "z" final no sobrenome materno, Hernández, que o filho levaria pela vida afora. Esqueceu de conferir a letra inicial. Apaixonado por futebol, o Dr. FFFernandes costuma ir ao estádio assistir aos jogos do seu time quando a partida acontece em casa, à tarde, nos sábados, domingos e feriados. Durante a semana ele precisa trabalhar, como qualquer um, e, à noite, não permite a intromissão de evento algum em sua rotina de ir para cama, para dormir, no máximo até as 23 horas - estourando, até as onze e meia da noite. O Dr. Fernandes é torcedor irredutível do Figueirense.
Uma das coisas que mais o irrita, claro, é esse tal de horário de verão, independente da justificativa que sustente a medida ou dos eventuais benefícios que possa trazer para ele, para outras pessoas ou mesmo para a humanidade: se conturbou os seus hábitos, já é motivo mais do que suficiente para granjear a sua repulsa. A noite de sábado foi mais um dia assim.
O Dr. Fernandes fez hora escutando pelo rádio o jogo do seu time, que pegou em casa o Metropolitano, de Blumenau, partida para ganhar fácil e chegar perto do título: aos 45 minutos do segundo tempo, o adversário marcou o primeiro gol da partida. Sofrido, o empate chegou aos 48 e meio, de pênalti. Fernandes ficou ouvindo os comentários sobre o jogo e as entrevistas com os revoltados torcedores do seu time por quase uma hora, até a meia-noite.
Quando o horário por fim chegou, ele fez o que reza o manual: atrasar os relógios em uma hora. O diabo é que irmãos e amigos, de sacanagem, só lhe dão relógios de presente - dos mais variados tipos, cores, formatos e versões: desde um cuco que vive na sala e diversos despertadores (que ele nunca usa), até inúmeros relógios de pulso. E ainda tem o relógio do forno de microondas, o do computador, do aparelho de som, do peso de papel, da calculadora. Pronto para ir para a cama, lembrou do relógio do carro e foi lá acertar os ponteiros.
Quando terminou de arrumar metodicamente todos os relógios, já era meia-noite de novo: estava irremediavelmente perdida aquela hora ganha com o fim do horário de verão.
(Amilcar Neves é escritor e autor, entre outros, do livro "Pai sem Computador", novela juvenil)