As Valentes Plantinhas Brasileiras, na Terra do Tio Sam
Eu era garoto quando minha mãe, conversando com um vizinho que gostava de cultivar verduras numa pequena horta atrás de sua casa, resolveu iniciar uma também no nosso quintal. Eu seria encarregado de regá-las cada dia, eliminar as ervas daninhas, fazer as “colheitas”, enfim, um programa bem abragente que não estava me deixando muito entusiasmado. Era mais trabalho que me arranjavam, diminuindo o tempo de brincar e jogar bola com os amigos. . .
Em poucos dias o vizinho veio dar-me devidas instruções sobre as tarefas e perguntou-me se eu gostava de rúcula. “Rú, o quê?” Eu nunca tinha sequer ouvido tal palavra. “Rúcula”, repetiu-me ele. “É uma verdura deliciosa, a minha preferida. E tenho certeza de que quando provar algumas folhas vai também virar seu fã”.
Eu não me lembro se ele me trouxe depois uma quantidade de folhas da novidade vegetal, ou se esperei pelo crescimento das sementinhas das que plantamos, mas o fato é que experimentei por primeira vez a verdura preferida do vizinho. Ummmm, foi sabor à primeira vista. De fato, passei a ter a rúcula como uma plantinha muito especial, minha indiscutível favorita também.
Ao longo dos anos, mudei-me para diferentes lugares pelo Brasil, e nem sempre tinha acesso à querida verdurinha. De vez em quando, porém, a encontrava por mercados variados, sempre de um verde vivo e folhas alongadas, com recortes ao longo de suas bordas não muito agudos. Ao consumi-las recordações da infância e adolescência vinham-me à mente, quando a rúcula era presença constante sobre nossa mesa. As lembranças eram tanto boas quanto más. A ligação que fazia automaticamente ao sentir o gostinho da verdura a certos episódios do passado era-me motivo de desejar sempre tê-la à mesa.
A rúcula tem característica de boa resistência a pragas, talvez por seu sabor de certo intenso amargor, mas não a ponto de causar repulsa. É um amargor bem rápido que na boca logo muda para um gostinho adocicado, nem sei bem como descrever. Só provando mesmo para entender o que digo. Faz até lembrar aquele texto do Apocalipse que conta como o vidente de Patmos tomou um livrinho da mão de um anjo, e o comeu. Daí, conta ele, “na minha boca era doce como mel; mas depois que o comi, o meu ventre ficou amargo” (Apo. 10:10).
Bem, a experiência de comer rúcula é semelhante—tem dois gostinhos, só que o amargo vem primeiro ao paladar, e depois é que vem o “doce”, uma experiência certamente bem mais atraente do que a do velhinho na remota ilha da Ásia Menor. E se for aplicado azeite de oliva, então, de novo, ummmm. . . O pouco de amargor até quase desaparece.
Pois bem, ao longo das muitas experiências da vida vim terminar morando nos States, no Estado sulino do Alabama. É uma terra cujo frio não chega a ser dos mais rigorosos, não se comparando com o que vivenciei numa estada de três anos no frígido Michigan, bem mais ao norte, com seus constantes temporais de neve e estradas perigosas para dirigir sob intensa neblina ao longo de outono e inverno.
No Alabama neve cai muito raramente, mesmo assim bem fraquinha, numa manifestação “farinhenta” de curta duração sobre o solo e telhados. Mas as geadas queimando gramados, poças dágua duras como pedra e parabrisas de carro requerendo rapagem prévia antes de se sair de manhã fazem parte dos usos e costumes da região, nos meses de dezembro a março.
Planejamos certa primavera plantar uma horta no nosso quintal. Isso fez-me recordar as rúculas de minha infância e juventude. A esposa Clélia viajou para o Brasil e lhe pedi para trazer sementes da saudosa verdurinha, se a encontrasse. Ela de fato descobriu sementes de rúcula num supermercado e comprou alguns envelopes.
Assim foi que importamos a rúcula tupiniquim para a nossa horta alabamiana. Não tínhamos idéia se prosperaria em solo estrangeiro, mas não custava tentar. Pois não é que nasceu por toda parte onde foi semeada?! E foi crescendo conforme o tempo ia esquentando na aproximação do verão, até que pudemos colhê-la e desfrutá-la. A Clélia não topava muito comê-la ‘au naturel’, como eu. Não dispensava o azeite de oliva, como acompanhante, que a torna menos picante. Até descobriu meios de fazê-la cozida, o que eu nunca havia visto.. .
Passamos a ter bom suprimento da plantinha, e notei que entre outras mais que plantáramos, era a que sempre se mantinha verdinha e vistosa. Outras sucumbiam ante o ataque de pragas variadas. Inclusive o couve, que crescia tão rápido, não dava no couro. Fraquejava sob o cerrado ataque de todos os tipos de larva, que, no entanto, deixavam os pés de rúcula em paz.
Plantinha de sorte! O seu ligeiro amargor era a garantia de sua saúde e prosperidade. As pragas não suportavam o seu sabor picante e tratavam de avançar para outras paragens que lhes resultavam menos agressivas, como os tomateiros, alfaces, e o pobre do couve, que parecia o grande visado. Também, tinha folhas bem avantajadas, acolhendo liberalmente todos os que resolviam fazer residência sobre suas folhas e caule.
E no ciclo inescapável do tempo e das estações, mais um verão avançou pelo outono, e percebemos que as plantas de rúcula iam minguando de tamanho na horizontal, enquanto avançavam na vertical. As folhas ficaram bem curtinhas, enquanto espigões floridos subiam às alturas. Com o tempo, nem material para se colher havia mais. Os espigões produziam só flores e sementes, e fiquei sem saber o que fazer. O vizinho que sabia muito sobre essa e outras plantas não mais estava por perto para me explicar o “fenômeno”. Pensei que era chegado o fim do nosso plantio da verdurinha que seguia sendo minha favorita. Paciência, quem sabe numa próxima viagem ao Brasil a Clélia se lembraria de trazer novos envelopes de semente.
Tanto ela quanto eu viajamos para o Brasil, em ocasiões diferentes, mas nenhum dos dois lembrou-se de adquirir as sementes da nossa querida rúcula. Na horta, com a aproximação do novo ciclo invernal, só os espigões das rúculas permaneciam em pé, mesmo assim revelando-se claramente decadentes. Iam secando, soltando suas sementes. Eu não achava que iriam ter mais futuro.
O tempo foi passando. Enfrentamos mais um inverno, e a horta estava lá, em “stand by”. Eu não tinha idéia de poder rever minha querida plantinha, e nem imaginava onde encontrar espécimes nativas pela região onde vivíamos. Enfim, resignei-me à idéia de não mais termos rúcula na terra do Tio Sam. Quem sabe, quando voltássemos para o Brasil poderíamos revê-la e consumi-la de novo.
Um dia, cheguei de carro pelo meio dia, e percebi algo que me pareceu familiar mais adiante. O que me parecia mato crescendo sobre a abandonada área da ex-horta, atrás do abrigo de carros, era, ao que parecia . . . rúcula! Saí do carro e fui conferir. Era a rúcula ressurreta! Apanhei um bocado das folhinhas, ainda meio “bebês”, e levei para a Clélia, como uma surpresa. Viva, desfrutaríamos novamente a deliciosa verdura! As sementes dos estranhos espigões haviam vingado. Nossa rúcula estava de volta!
Passei a regar as plantinhas ainda na “infância” regularmente. A primavera virou verão, e a plantinha crescendo e se espalhando. A essas alturas eu já havia desanimado de plantar qualquer outra verdura. Limitamo-nos à rúcula, sempre abundante quando bem tratada. Passamos aqueles meses todos com rúcula sobre a mesa.
Mas novo inverno se aproximava. Pensei até num esquema de cobrir tudo com plástico para formar uma espécie de estufa. Contudo, tantas outras preocupações me faziam postergar a imaginada providência. E as noites frias vieram compor nossa paisagem outonal e invernal. De vez em quando eu ia conferir, e lá estavam as plantinhas, meio encolhidas, sem muito viço, mas vivas e firmes em sua posição.
Noites bem geladas, de causar geadas que transformavam gramados verdes em manchas marronzadas sobre terrenos e jardins, atacaram também as plantinhas vindas das Minas Gerais. Nossa rúcula era mineira de origem. Sua cidadania alabamiana era adotiva, mais ou menos como no meu caso, cidadão brasileiro e americano. Só que eu morava em Minas, mas minhas sementes foram lançadas na distante Paraíba, e recuando ainda mais, entre os fugitivos da persegução aos judeus que antes já haviam fugido de Portugal e Espanha no século XVI, fixando-se na área do Recife. Pelos meus sobrenomes, tanto de parte de pai quanto de mãe, minhas origens remontam aos “cristãos novos” nordestinos—judeus forçados a se converterem à fé católica pelo século XVII no Brasil-colônia.
Mas mudando de raízes étnicas para vegetais, o frio parecia abalar pouco as nossas plantinhas. Não houve “estufa” nenhuma, e terminei deixando de propósito para ver no que ia dar. Queria conhecer os limites da plantinha ante os rigores invernais do Alabama. O fato é que houve dias frios, com noites geladas. A recomendação é manter torneiras pingando durante a noite para que a água não congele e estoure os canos, medida que parece um tanto absurda para quem vive em climas mais favoráveis pelo Brasil tropical. E ainda tivemos uma seca no Estado como não se via há décadas. Mesmo assim a rúcula resistia heroicamente ao duplo desafio de frio e seca.
Estamos agora em pleno inverno. As noites mais frias do ano se deram há poucas semanas. Não obstante as valentes plantinhas brasileiras estão sempre presentes no nosso almoço.
Os espigões já estão começando a aparecer em algumas das plantas. Logo todas estarão passando por esse período intermediário, a metamorfose para nova geração. Ficaremos sem as folhas por um tempo, mas contamos com a sua ressurreição para novo período de viço e bons serviço para o nosso apetite.
A Clélia até andou querendo saber que benefícios teria a rúcula para a saúde. Ela conhece um bocado sobre ervas medicinais, e prepara muitos chás que me faz tomar com suco e outros líquidos. Seriam tidos por intragáveis para quem é muito exigente com o paladar. Eu, porém, os tomo convencido de seus efeitos benéficos, segundo os livros que a Clélia estuda a respeito.
Sempre passamos por uma loja de produtos naturais numa cidade vizinha, e os envelopes plásticos com pozinhos verdes mais claros e mais escuros sempre terminam encontrando o seu caminho para o armário da copa onde ela os conserva. Terminarão no panelão onde os ferve ao atacado para irmos tomando ao varejo, principalmente no meu caso, por ter passado por uma experiência de início de câncer de próstata, felizmente episódio já superado após uma bem-sucedida cirurgia.
De qualquer modo, fico intrigado quanto às propriedades benéficas da rúcula, pelo menos de suas raízes. A Clélia, sempre curiosa sobre essas coisas, gostaria muito de saber. Nos seus livros de instrução sobre ervas curativas nada consta. Alguém sabe nos dizer?
Se a raiz da rúcula também tiver propriedades curativas, haverá de encontrar o seu espaço entre os envelopes com os pozinhos vegetais da Clélia. E aí é que iremos amar de vez essa valente plantinha, que lá das Minas Gerais vieram nos servir tão bem na Terra de Dixie.