Andando por Aí ou Rua Lins de Vasconcellos, 124

A gente vive num mundo de ilusão. Mas também sem ela a vida não tem sentido. A ilusão pode ser uma razão para se viver. Ou será que não tem de haver uma razão?

A propaganda determina o tipo de roupa que se deve usar. A etiqueta é importante. Olho para o seu tênis procurando uma marca. As pessoas podem até ser classificadas em decorrência do tipo de roupa que usam. São mais avançados, ou de mais bom gosto, ou mesmo mais inteligentes. Têm mais dinheiro ou um nível de renda melhor. É a rotulação.

No fundo a gente sabe que a roupa é uma imposição – que via de regra leva à ostentação. Que o terno alinhado que você usa não espelha o seu caráter, que “beleza não põe mesa” – embora seja “a primeira impressão a que fica”.

Entretanto, tem-se que trabalhar para se obter um tênis melhor, um terno melhor, um carro mais atual, e assim adquirir respeito, admiração, importância.

Nessa busca lutamos e nessa luta sofremos. Na medida em que nos vemos na obrigação de adotar a indumentária imposta, cujas peças nem sempre temos condições de comprar, do mesmo modo que padrões de comportamento que nos são exigidos, nossa atenção fica muito voltada para o cumprimento dessas exigências. Daí decorrem nossas angústias, aflições, a segurança, a insegurança, o medo, o sucesso, o fracasso, a realização pessoal, a felicidade (?), embora tenhamos claro que somos avaliados não pelo que somos, mas pelo que o rótulo diz a nosso respeito.

Seria válido um outro projeto de vida, fora dessa compartimentalização toda, dessas contingências que achamos que acabam nos definindo (ou que, na realidade, nos suprimem?), de modo que nossas realizações não fossem medidas pela obtenção do melhor emprego ou do melhor carro, mas pela autenticidade do nosso sorriso ou pela serenidade da nossa conduta? Seria melhor andarmos por aí, não comparando ou medindo o que temos ou não temos em relação ao nosso companheiro ou ao ilustre desconhecido que passa, mas, conscientes de nossos deveres e obrigações enquanto membros de uma comunidade produtiva, andarmos por aí apenas preocupados com a Mãe Natureza, por exemplo? Seus rios, seus lagos, mares e montanhas, bosques e florestas. Neve, flores, plantas, cotia e a beleza da manga rosa? Despreocupados, gozando a Natureza, e nessa despreocupação atingindo um estado de espírito de que resultasse uma realização pessoal que não fosse decorrente de padrões que tivéssemos que atingir? Não seria melhor assim?

Seria, contudo, compatível esse projeto de vida com a nossa sociedade de consumo?

Essa é uma pergunta para ser respondida no próximo capítulo... da novela das 18:30... logo após o jornal... que nos informará a nova cotação do dólar...e o que se tem feito para o progresso da nossa indústria bélica... crimes, loteria esportiva... culminando com a notícia de que o Bigode se recuperou da contusão e vai jogar no domingo.

Estávamos ambos sentados no meio-fio da avenida, como chamávamos a vila em que ele morava. Minha casa ficava na ruazinha de terra que dava para a avenida. Era um final de tarde. Estávamos sentados no lugar onde jogávamos linha-de-passe com bola de meia. Nunca o vi jogando. E aí ele desenhou um navio que achei tão bonito que resolvi, embora temeroso, pedir-lhe que me desse. Queria guardá-lo. Então ele me olhou ternamente, levando nisso pouco mais que um segundo, me fez devolver-lhe a folha em que estava o desenho e a rasgou em pedacinhos...

Rio, 01/11/1983

Obs.: O último parágrafo desse texto corresponde à realidade. Era um final de tarde. Estávamos Maurício e eu sentados, como digo acima, no meio da avenida em que ele morava (rua Lins, 124), que fazia esquina com a minha rua (Guapuí). Eu podia ter 9 ou 11 anos. Ele devia ter 18 ou 20. Falava pouco. Não sei como me deu atenção naquele dia. Fiquei impressionado com a beleza do navio desenhado no papel, ali naquela hora, em poucos minutos. Era para mim coisa de exímio artista. Morreu logo depois num acidente de carro na antiga estrada que ligava Cascadura à Barra da Tijuca. Seu pai, médico, socorreu o meu, numa manhã de 1961, vitimado por um AVC ou trombose de que viria a falecer poucos dias depois.

Rio, 29/11/2004