"Um Homem Muito Grato" =Crônica=

Abordado por um cambista na avenida Paulista, Deocleciano sentiu raiva. Raiva por não ter resistido à conversa do homem, raiva por sua fraqueza, raiva por ter comprado um bilhete inteiro que não queria, e agora, mais raiva ainda por ter verificado que ficara sem o dinheiro da condução. Teria que ir a pé até sua casa, vários quilômetros adiante, na Aclimação.

- Ainda bem que é uma linha reta daqui até lá...

No caminho foi pensando no que poderia fazer se aquele bilhete fosse premiado. Se saísse um primeiro prêmio, na cabeça, a filha estaria salva, poderia ser operada pela última vez e ele poderia mandar aquele agiota insensível à puta que o pariu. O que faria com todo prazer do mundo.

- Bobagem minha...essa merda nunca dá nada de valor...só ganho terminações. Número besta esse 78661. Não tem nada a ver com os que gosto de comprar.

Vinte minutos de caminhada. Meia hora de caminhada. Muitos quilômetros à frente ainda.

- Essa porra dessa Paulista não termina nunca...Deve ser a avenida mais comprida do mundo. O cansaço está me matando e as pernas parecem estar inchando.

Decidido, Deocleciano parou em uma banca de jornais de um conhecido e ofereceu a ele o bilhete. Melhor pegar o dinheiro de volta e ir de táxi para casa do que morrer de cansaço no meio da rua. Já não era mais criança.

-Não quero bilhete, nenhum, seu Deocleciano. Precisa de dinheiro? Leve algum e me pague logo que puder. Vinte cruzeiros ajudam?

- E como...Ainda sobra para uma mistura. Pago no fim da semana, pode ser?

O bilhete foi premiado, Deocleciano pegou uma bolada firme, pagou a operação da filha, comprou a casa em que morava de aluguel, um carro novo, quitou as dívidas e, importante, não se esqueceu do amigo jornaleiro. Deu a ele trinta cruzeiros em pagamento pelos vinte providenciais.

Fernando Brandi
Enviado por Fernando Brandi em 15/02/2008
Código do texto: T860814
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