O cronista desencalha
“Orelha grande é sinal de vida longa”, sussurrou-me Leide, carinhosa, com uma voz tão sensual que me deu vontade de ter orelhas ainda maiores.
Descansávamos, depois de extensa e gratificante caminhada pela orla da Ilha do Governador, num banco de pedra da Ribeira, trocando juras de amor — se assim podemos chamar a pegação em que de repente nos vimos empenhados — e apreciando a água suja do mar. Era um domingo de sol forte, de quiosques e botequins repletos de mesas na calçada, mas não se via nenhum louco mergulhando naquela praia de óleo, palha podre e cocô.
Impressionado com a consoladora reflexão de minha namorada, pensei comigo: “Esta mulher sabe das coisas”; e aproveitei o embalo para perguntar a ela se não teria também umas tiradas boas como essa acerca de nariz grande e bolsas sob os olhos. Bastante animado com o lance das orelhas, não queria perder a oportunidade de sair do nosso encontro definitivamente reconciliado com a minha cara.
De onde nos achávamos dava para divisar ao longe primeiro a Ponte Rio—Niterói, depois o Pão de Açúcar e o Corcovado. Leide hesitou um instante, uma fração de segundo, até reconhecer este último. Diga-se em seu favor — as primícias de uma paixão é sempre um tempo de franca generosidade — que a estátua do Cristo lá no alto era apenas um borrão na paisagem nublada para aqueles lados, prometendo as chuvas e os ventos furiosos que de fato vieram a castigar a cidade no final do dia. De qualquer modo, gato escaldado, lembrei-me de passar a mão espalmada na frente dos seus olhos, já que enxergar minha orelha não constituía prova alguma de boa visão. Pura felicidade: Leide piscou, piscou várias vezes, em resposta ao meu gesto. Via, portanto. Via perfeitamente, além dos dois gramofones, o narigão, as bolsas sob os olhos fundos, os lábios finos, o bigode e a barbicha obscena do cronista. E nada disso impediu — que mulher extraordinária! — que nos beijássemos com fome e entusiasmo, cada qual mais a perigo que o outro. Dir-se-ia, quanto a mim, um Cyrano de Bergerac bem-sucedido no amor, nariz e espada em riste.
Faz uns três meses que Leide e eu nos conhecemos virtualmente no Orkut. Saímos dali para os telefonemas diários e destes para o que tem sido uma convivência amorosa repleta de encanto. Tudo o que ela diz a seu próprio respeito em sua página orkutiana é verdade, e é pouco, não tenham a menor dúvida.
Eis aí a bela lição da grande rede: sabendo usar, é só correr para o abraço.
[15.2.2008]