Quem Nasce Hoje
Quem nasce hoje precisaria ler ou escutar de alguém como as coisas aconteciam antes de sua chegada ao mundo. O samba, por exemplo, já foi uma manifestação musical proibida em salões da burguesia ou da sociedade estabelecida em determinada época. Com raízes genuinamente africanas, e em virtude de tudo o que de inferior pudesse ser atribuído à raça negra, não era permitido em espaços freqüentados por brancos.
Como aconteceu em Cuba, onde o “son” (primeiro gênero musical de Cuba, considerado um símbolo nacional e que reúne, de uma forma tipicamente cubana, as tradições africanas e da colonização espanhola), também com raízes africanas, era um tipo de música marginal, somente praticado às escondidas por pessoas consideradas de classe inferior, em que se destacavam os negros.
Na década de 30, e talvez mesmo durante a de 50, Gafieira (ou “dancing”, vocábulo roubado à língua inglesa) no Rio não era um lugar a que se devesse ir. Principalmente mulheres que tivessem uma vida normal, já que as que se encontravam nesses locais não tinham um comportamento aceitável pela sociedade. Gafieiras eram freqüentadas por mulheres consideradas de vida “suspeita”. Além disso, há qualquer momento poderia haver uma confusão, o que colocaria em risco a integridade das pessoas.
O adolescente de hoje só toma conhecimento desses fatos se recorrer a alguns livros sobre o assunto ou a pessoas mais velhas. E ele então irá observar que, apesar de toda a marginalização inicial, o samba acabou triunfando diante das polcas, marchinhas, marchas-rancho, frevo e outras modalidades musicais. Assim como o “son” conseguiu se impor, a partir dos “aires libres” (termo usado em Havana para os cafés e bares ao ar livre situados nas calçadas das principais ruas do centro da capital cubana), e tornou-se uma manifestação artístico-cultural aceita pela preconceituosa sociedade cubana pré-revolucionária.
Depois de Fidel, é possível que não só o “son”, mas de um modo geral a atividade artístico-cultural na ilha tenha sofrido com as restrições impostas à movimentação das pessoas. Sobretudo no que se refere à entrada e saída de cidadãos, cubanos ou não, do país.
Do mesmo modo, observa-se no Brasil, depois de 1964 e durante os dolorosos vinte anos de duração do regime discricionário, batizado como o nome de Revolução (ou Golpe?) de 64, observa-se também em nosso país uma retração da atividade cultural, com uma abrangência muito maior que a ocorrida na ilha de Fidel. Não se acabou com o samba – o que seria, é claro, difícil, senão impossível, de se conseguir – e nem com nossos bares ao ar livre. Mas durante muito tempo nossos compositores tiveram que conviver com a censura imposta às letras de suas obras. E nossos cientistas e professores, notadamente os de Estudo Sociais, assim como vários profissionais de nível médio ou superior, tiveram que sair do país devido ao risco de vida que corriam por professarem uma ideologia incompatível com os ideais estabelecidos pelas Forças Armadas. Data desse período o início do esfacelamento da educação no país, em todos os níveis, observando-se o progressivo declínio da qualidade do ensino e da eficácia dos principais estabelecimentos escolares no Rio de Janeiro, sobretudo os de ensino público, por muito tempo considerados os melhores.
Mas o samba, como não poderia deixar de ser, triunfou. E com ele o Carnaval. Que já existia antes dele e, é claro, antes de 1964. E continua existindo até hoje. Mas quem nasce hoje não sabe o que foram as Grandes Sociedades, os Ranchos. Não sabe que as Grandes Sociedades e os próprios Ranchos tinham uma importância maior que as Escolas de Samba. Não sabe que as Escolas de Samba que desfilavam na Avenida Rio Branco ou na Presidente Vargas vinham confinadas em cordões de isolamento, como acontecia com qualquer bloco ou escola maior que se apresentasse em ruas do subúrbio da Central ou da Leopoldina (acabaram com ela há pouco tempo).
Não sabe quem nasce agora que o acesso e a participação do povo no Carnaval eram muito maiores que hoje. Quando o Carnaval é produzido, dirigido e comandado por pessoas às vezes implicadas em procedimentos considerados ilícitos. E que para estarem no palco, ao lado de autoridades municipais, também co-participantes na organização do Carnaval, eventualmente carecem do benefício de instrumentos jurídicos como o “hábeas corpus”.
Mas tudo muda. Tudo tem que mudar. E o Carnaval não poderia ficar imune a mais essa lei da natureza. E não vale aquela tentativa de sofisma que nos leva à oração: “No meu tempo... era melhor”. E sabe por que não vale? Porque o adolescente, ou quem nasce agora, é de hoje. Não do nosso tempo.
Está tudo certo. Só que nós nos reservamos ao direito de, ao menos, não acompanhar (ou não poder acompanhar) a qualidade que hoje se verifica. E é por isso que morremos. Aceitar em toda a sua totalidade o que aí está é tarefa pra quem nasce hoje. Pra quem tem mais bala na agulha.
Rio, 15/02/2008