De duas premissas negativas nada se conclui

Onde está Guilherme? A máquina de lavar está no modo molho e agitação. Os chinelos andam pelo corredor. Todos, menos a mãe - devem estar vendo a novela das 7. Espera aí, parece que o pai não chegou. Mas aonde está Gui? Clara olha para suas unhas feitas - que graciosas estão! Prefere os esmaltes escuros: chocolate, café, licor, uva; entretanto, nesta vida de "Amélia" e ainda sem novas luvas, o esmalte escuro não dura uma semana. Desta vez passou o cremoso Paris e por cima o cintilante Cristal. Interessante esses nomes de esmalte. Tem uma marca que usa só nomes de praias brasileiras... criativo. Fica uma cor bonita, apesar de não ter muito destaque nas unhas curtas. Tentou deixá-las um pouco maiores, no entanto, que tortura: na hora de lavar a louça, no banho, na limpeza do nariz - eca! Perguntou para uma colega de trabalho (com as unhas belas e enormes) - como você faz na hora de limpar o nariz? A professora riu e disse - você pensa em cada coisa... Pensou mesmo e até se aventurou pela experiência, sem encontrar a verdadeira fórmula.

Guilherme solta sua voz e diz: quero coca! - Não, só amanhã - diz a mãe tentando enrolar. Que coisa inexorável: Clara vive na casa partida há quase três meses, não sabe os nomes do pai, nem da mãe, vê Guilherme raramente, e quando isso ocorre, estranha, pois o menino não se parece com a voz. É meio gordinho, não está acostumada a ver crianças gordinhas. Parece que criança tem que ser magra, pois tem que correr, pular, brincar com o próprio corpo. A mãe quer ver a novela, e Gui procura seu palito com voz chorosa. Chorosa... Clara chorou sua cota do dia, se bem que foi a noite. Escovou os dentes, depois de comer seu pão integral feito de uvas passas (hoje inventam cada gostosura), uma mussarela e chá de mate sem açúcar. Sim, porque o açúcar tira o sabor do chá, então decidiu que "sugar" não mais. Ele, já se tinha ido, para a aula, ou para a casa de um amigo, quem vai saber... Pingou o colírio e foi-se.

Clara... sempre clara e triste. Gozou de sua tristeza, trancou a porta da sala pelo lado de fora, porque depois do ladrão, a fechadura não presta mais. Começa o Jornal, a máquina continua no seu molho e agitação. A mãe convida Guilherme para tomar banho - pra ficar cheiroso, vestir roupa, pois está frio - mas não convence. Ele grita um nãaaaoo, e depois com voz manhosa diz: tô gripado.

O mesmo quarto de todas as noites, mudou a cama de lugar para não acordar com a luz da janela na cara; mas agora não dá para fechar a porta. Não é comum ter que fechá-la, porém, quando há visitas temporárias, seria melhor que se fechasse a porta dos sonhos.

Clara se preocupa com os rituais. E este é o mais triste do dia, quando a noite vem. Assiste a nova novela das 6, o vê passando pela casa, tomando o seu banho, comendo, lhe dando o beijo obrigatório das saídas. Lembra-o de que tem que guardar suas camisetas e camisas, que ele simplesmente ignora que estão passadas. Não passa as calças pois são grandes e não gosta, se ele quiser que as passe.

Será que a lavação de roupas acabou? Os chinelinhos estão se movimentando pelo varal do corredor. Huuumm, Clara sente o cheirinho do amaciante. É, realmente o pai não está, até agora não ouviu a voz dele.

"Oh grande urso esformeado, consegue sentir o aroma do morango vermelho maduro a km de distância" - a mãe fazendo a entonação das estórias infantis. Leia mais mãe, só um "tiquinho". O "molango" deve ser enorme, poque Gui o confunde com uma melancia e pede: - Agola, lê você de novo. Depois de ler pela segunda vez, a mãe avisa: chega, cansei!

Clara se esquece um pouco da sua vidinha, da escuridão da noite do seu ser. Aprendendo Lógica com Cleverson e Vicente. Não tinha reparado nos nomes dos autores. Cleverson - de onde terá surgido a inspiração para tal nome? A argumentação é como a construção de uma casa - nossa! de uma casa, com tantos materiais diferentes, etapas a se cumprir. Guilherme chora, Guilheme sempre chora e Clara também. As luzes da casa estão apagadas, menos a do quarto. Em qual pedaço de mim haverá luz ainda? - Clara se pergunta. Escuta a voz de Paula, a irmã gêmea da novela das oito. A mãe está brava com Gui, gritando com ele pra variar. Acho que algumas mães não se percebem falando alto, alto demais. Clara se lembra de ter lido em algum lugar, em algum tempo, um texto falando do grito. Ah, se lembra ainda que o leu para uma nona série, no intuito de que os gritantes alunos/as falassem mais baixinho... Era de Gandhi, o pequeno enorme! Dizia que o grito é para os corações que se encontram afastados... Clara pensa em si, não grita, mas onde está seu coração, que não sente nem vontade de falar, afundou-se no silêncio da casa, afundou-se no seu silêncio. Escuta os sons da outra metade da casa, do pai que chega de bicicleta, da novela que está passando, da panela de pressão no fogo, de Guilherme pedindo uma bicicleta nova.

Uma bicicleta nova...

Lígia Martins
Enviado por Lígia Martins em 14/02/2008
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