Eulália
Pela passagem do aniversário de Dr.ª Vera, pediatra do Posto Maria Isabel, na cidade de Assis(SP)
Eulália veio até a calçada, olhou para ambos os lados da Rua São Paulo, cumprimentou alguns transeuntes, verificou a caixa postal, abriu sua cadeira e sentou-se na calçada, buscando silenciosamente as amigas com os olhos repletos de curiosidade. O fim de tarde era o momento mais interessante do dia. Em frente de sua casa ou de outra qualquer reunia-se com as amigas para, imitando as alcoviteiras nas esquinas do Conjunto Tibiri I, saber das informações mais recentes da vida alheia.
A mais recente delas envolvia a mudança de um vizinho rabugento, ranzinza e mal-humorado, diretor de igreja, pai dispensável e esposo aceitável, que ostentava a santidade da família. Inicialmente a intenção era viver numa praia qualquer da capital, mas se deparou com a realidade financeira da família, contentando-se em morar no subúrbio. Ou no subúrbio ou na praia a verdade era única: os vizinhos festejavam sua partida. Depois de anos de intromissão, confusão e desentendimentos a sua saída implicava tranqüilidade e liberdade.
- É um desastre! Desastre! Eulália falava, levanta-se, voltava-se a sentar, levantava-se novamente, dava alguns socos no ar. Sua impaciência refletia-se no corpo: o sangue subia-lhe para a cabeça, o calor aumentava, o coração disparava, inquietando-a ainda mais.
Sem se dar conta da mudança do tempo, em razão da ansiedade que a consumia, não viu quando os primeiros pingos suaves de chuva tocaram-lhe os braços. Rapidamente fortalecidos, os pingos caiam raivosamente sobre o telhado, do telhado ao chão e aos vasos de plantas. Mal teve tempo de entrar no terraço arrastando a cadeira, segurando os cabelos, levantando a barra do vestido, lamentando-se do banho inesperado.
Tiraria a roupa imediatamente se pensamentos e devaneios não a invadissem enquanto olhava a chuva lavar o chão imortal. Sonhava com o pai aceitando o namoro. Jorge. Jorge nada valia, parecia um demônio de tão feio, vadiava o dia inteiro na prefeitura, onde dizia trabalhar oito horas diárias. Além disso, acusavam-no de ter filhos para os lados de Monteiro.
Antônio Soares, pai de Eulália, não era ruim. A morte da esposa multiplicou a preocupação com a única filha. Freqüentava os encontros de pais e mestres, lavava, cozinhava, passava roupa, passeava e tomava sorvete com ela, ia à igreja, comprava-lhe roupas e apetrechos de adolescentes. Eulália não se queixava do pai, mas não se conformava com o obstáculo ao namoro.
Os pensamentos desfizeram-se com o barulho do portão. O pai entrava escorrendo, sorrindo, indagando se ela estava bem. Após a aquiescência da filha, tirou a camisa e gritou em direção ao portão. Jorge abriu o portão, segurando um ramalhete de crisântemos, a água caindo pela roupa verde, os cabelos desalinhados e um sorriso estarrecedor. O ramalhete, quase completamente arruinado, desconjuntava-se facilmente nas mãos de Eulália que, em um tempo, atravessou a calçadinha que ligava sua casa à rua, abraçando efusivamente Jorge e, virando-se para trás, agradecia com um sorriso disfarçado. O pai acenara com a cabeça.
Antes de entrar, Eulália viu um caminhão estacionar na casa do vizinho rabugento que, sob protestos estridentes do motorista alertando sobre a danificação dos móveis a serem transportados durante a chuva, levava caixas, roupas, instrumentos musicais, móveis, objetos, aparelhos domésticos e outros pertences ao caminhão. A mudança aconteceria naquele instante, com ou sem chuva, gritou o ranzinza ao motorista impaciente e furioso.
Compreendera não ser a intransigência a melhor alternativa na solução de problemas. O vizinho partia. Jorge freqüentaria sua casa. Terminava uma era de lutas para se iniciar um período de harmonia e paz. Lá no portão um carretel de linha verde, provavelmente caído do bolso de Jorge ao fazer uma costura simples na manga da camisa, mudava de cor com a chuva, a areia e o vento recebidos.
*Publicado originalmente no Jornal de Assis (Assis – SP) de 5 de abril de 2007.