A LEMBRANÇA DA IRMÃ
A LEMBRANÇA DA IRMÃ
Texto de: Nelson Marzullo Tangerini
Naquela noite, solitário, João resolveu sair à rua à procura de um bar aconchegante, longe do burburinho da cidade.
Precisava estar sozinho. Sozinho mesmo. Sem aquela solidão que o acompanhava há algum tempo.
Às vezes pensamos estar sós, em casa, e não estamos. Porque estamos cercados de tantas coisas, tantos retratos, tantos discos, tantos livros, tantas recordações...
Sair sozinho à noite é despir-se de uma pseudo-solidão, à procura da solidão verdadeira. A solidão despida de tudo. A solidão que faz você conversar consigo mesmo, cair dentro de si.
Pois João saiu, naquela noite, no seu carrinho, à procura de um lugar que fosse sua cara ou a cara daquela solidão de que ele tanto precisava.
Adentrou timidamente num pequenino bar de Botafogo. Daqueles que ficam lá para dentro do bairro do clube da Estrela Solitária, isolados do mundo, onde a música toca baixinho e as fumaças dos cigarros são dançarinas árabes, coreografando a dança do ventre.
Recolheu-se no fundo do bar. Ele não queria ver cara alguma. Ele queria a solidão procurada. Impossível. O bar não estava tão vazio assim.
Na mesa de fronte, a beleza de uma jovem chamou a atenção de João. Na verdade, João não procurava um outro tipo de solidão. Talvez ele procurasse alguém. Talvez alguém que fosse impossível procurar. Mas ele a procurava, inconscientemente, mesmo que a esperança não existisse mais.
Acontece que a moça estava acompanhada e o namorado notara uma correspondência nos olhares.
Eles se olhavam. Foram olhares profundos.
Quem sabe a moça lia a alma angustiada de João?
Olhares eletrizantes...
O namorado da moça, a esta altura, já estava enfurecido. Estava inseguro diante de tal correspondência.
O clima tornava-se mais tenso e mais tenso, mesmo que o olhar de João fosse terno, tímido, contemplativo. Seus olhos a filmavam como câmera de cinema. Filmava todos os seus gestos.
O namorado da moça já estava disposto a partir para a violência.
Pressentindo uma cena de ciúme, João escreve um bilhete, bebe o último gole de seu martini, paga a conta e pede para a garçonete entregá-lo à moça. E retira-se contrariado.
O namorado da moça achou tudo aquilo uma tremenda audácia e saiu atrás de João para tomar satisfações. Segurou João pelo colarinho.
- Cara, você é muito abusado!
- Se você lesse o bilhete que eu escrevi para sua garota, você não teria este juízo de mim.
O namorado voltou à mesa e leu o bilhete, que ficou todo amassado, tamanha a ignorância com que aquele brutamonte o arrancou da mão da namorada.
Leu e ficou passado. Queria meter-se debaixo da mesa, de tanta vergonha.
A moça lembrava a irmã de João, falecida há pouco. Era o que dizia o bilhete:
“Você é muito parecida com minha irmã, que tanto amava. Lembrei-me dela, quando vi você”.
João voltou, então, para casa, certo de que achara o que mais procurava: a lembrança viva de sua irmã querida.
(Do livro Lembrança Vítrea)
Nelson Marzullo Tangerini, 52 anos, é escritor, jornalista, fotógrafo, compositor e professor de Língua Portuguesa e Literatura. É membro do Clube dos Escritores Piracicaba, onde ocupa a Cadeira 073 – Nestor Tangerini.
n.tangerini@uol.com.br, tangerini@oi.com.br