Dona Presepada
A Dona Laura (em memória)
Dona Presepada divertia-se narrando seus problemas hipocondríacos. Reclamava das dores na coluna, do desconforto estomacal, da ineficiência dos óculos, dos seios doloridos, da panturrilha inchada, da boca amargando, da respiração curta. Como não dispunha de outros recursos, a descrição dos males da saúde prendia os ouvintes.
Embora se dissesse cega, Dona Presepada lia as letrinhas das legendas das fotografias nos jornais, fazia crochê à noite apontando as deformidades dos pontos, percebia as trocas de carícias entre namorados em carros parados a mais de trinta metros de distância, encobertos pelas penumbras das árvores, distinguia perfeitamente as tonalidades entre duas folhas brancas de papel e puerilmente passava a linha pelo orifício da agulha.
Apesar de sentir dores reumáticas nos joelhos e nos braços, não recusava um convite para sair: esquipar era palavra renovada em seu dicionário de felicidade, um sonho tangível e complexo de alegria, uma fonte de satisfação inefável.
Se tivesse um carro, tudo bem. Senão andava três, cinco ou dez quilômetros para chegar a qualquer lugar. Até mesmo na praia, a idade não a impedia de nadar, de mergulhar, de submergir e de emergir sorridente e disposta, levada e trazida pelas ondas grosseiras reunidas no intuito inútil de derrubá-la.
Conquanto suas dentaduras sumissem, ela não se intimidava: abocanhava os ossos de coxas e asas de frango destruindo, com a gengiva, eventuais obstáculos. Seu fastio surpreendia: depois de engolir arroz, feijão, frango, verduras, legumes e suco de laranja, ela agarrava duas bananas, dezessete bolachas e uma fatia bem disposta de goiabada.
Dona Presepada ganhou esse nome com o tempo. Dona, pela idade. Presepada, pelas situações cômicas em que se metia. Um dia, vestiu alguns adereços do banheiro. Pegou um tapete, com abertura especial para os pés do vaso sanitário, arrumou-o na cabeça e saiu perguntando por que aquele chapéu estava no chão. A filha, habitualmente irritada pelas presepadas da mãe, gritava ensandecida: - Mãe! Mãe! Isso não é um chapéu! É um tapete de banheiro! Dona Presepada, afável, sem dentadura e sem os espessos cabelos pretos de outrora: - Mentira! Isso é um chapéu. Tu não queres que eu o use.
Uma vez espalhou aos quatro ventos que fora roubada quando, na verdade, esquecera o dinheiro no fundo falso do guarda-roupa. Item indispensável na vida cotidiana, Dona Presepada gostava, mas desconhecia o valor do dinheiro de modo que alguém poderia enganá-la facilmente vendendo-lhe, sem resistência dela, um pacote de pipocas intragáveis por quarenta reais.
Numa outra situação, vasculhando alguns pertences do marido morto vinte anos antes, encontrou dois pares de óculos numa caixa de sapatos velha que abrigava igualmente um barbeador antigo, um sabonete pouco usado, uma saboneteira, um creme dental pela metade e meias de cores diferentes. Os objetos talvez não tivessem valor histórico ou monetário, mas cada guardado puxava-lhe uma lembrança naturalmente imprevisível. Gostou dos óculos, colocou-os e saiu vangloriando-se que, finalmente, enxergava de verdade.
Ocasião houve em que se jogou no sofá reclamando do crescimento excessivo dos seios. Seios enormes só poderiam ser indício de doença grave, mas a filha, olhando clinicamente a mãe que se lamentava, tentou acalmá-la informando que os seios grandes acompanhavam a gordura adquirida e distribuída pelo resto do corpo. Inconformada com a resposta simples e óbvia, Dona Presepada, utilizando-se de seus dotes hipocondríacos, gritava, virava para um lado e para o outro, pulava e agonizava dizendo que ia morrer, que ninguém se importava com ela, que queriam comer-lhe a aposentadoria...
O neto mais novo compartilhava das artimanhas de Dona Presepada. Quando ela passou dos sessenta anos, inventou que não escutava bem. Enquanto os outros netos, a filha e o genro gritavam, berravam, gesticulavam ou se irritavam para pedir-lhe que trocasse de roupa ou procurasse algum documento e, ao fim das tentativas, nada conseguiam, o neto mais novo transmitia-lhe inaudivelmente algumas instruções: ela as entendia e as executava, sem perguntas, sem demora, sem erros.
Pouco depois dos noventa anos, um anjo apareceu e a puxou. Dona Presepada transpassou a porta principal da recepção celestial – embora devesse expiar alguns dos pecados no purgatório por pelo menos trinta anos – e transformou-se em anjo de chocolate.
Quando o neto mais novo presenteia o mais velho com uma trufa ou uma guloseima, o gesto não representa um incentivo à gula, mas a exteriorização da presença permanente de um anjo de chocolate, Dona Presepada, recheado de saudades e surpresas acomodadas no depósito da memória.
*Publicado originalmente no Jornal de Assis (Assis – SP) de 18 de outubro de 2007.