Mulher corajosa

A Dona Isaura

Verdade que sempre teve medo de sapos, rãs, pererecas e animais afins. Não podia imaginar um dia de chuva que se afligia logo, pegava-se aos santos e às santas, rezava o terço se os bichinhos não aparecessem.

Resolveu deixar a casa do filho no meio da tarde de domingo. Apesar dos argumentos dele de que o sol estava quente e poderia causar-lhe queda de pressão, das advertências da vizinha sobre bêbados comemorando resultados de jogos de futebol e das certeiras brigas que tais comemorações desencadeavam, do pedido da nora para ficar até o jantar e mesmo dos apelos de uma parenta, incomodamente hospedada na casa, ela não se fez de rogada: escolheu o neto mais velho como guia e puxou-lhe os cabelos abruptamente para exteriorizar sua escolha.

Tinha coragem, disse depois de acomodar alguns pertences numa bolsa. Não tinha sol quente, bêbados na rua, jantar ou missa que a segurasse. Com seu andar de pato, testa de arrombar cofre, cabelos ralos, vestido florido com um babado na altura do busto, ela partiu falando qualquer coisa.

Os conhecidos a cumprimentavam em todas as esquinas, vez por outra estendendo cumprimento ao menino que fingia não vê-los. Em cada esquina, em cada lugar, paravam para contar que estava indo para casa, que o filho, a nora, a vizinha e a parenta pediram para ela ir embora à noite, mas recusara-se.

Assim que chegaram, o menino correu para a televisão preto e branco. Por mais que tentasse, mudasse os canais, escurecesse ou clareasse a tela, não funcionava. Aplicava-lhe alguns socos, mexia na antena, mudava de lugar, trocava os fios, desligava e ligava o aparelho, mais socos.

Desistiu.

Já no quintal, encontrou um cachorrinho. Presente da vizinha da esquerda. O cãozinho latia, pulava de um a outro lado, balançava o rabo freneticamente e, talvez ainda sentindo falta da mãe, tentava mamar ou passar a língua em tudo que encontrava.

Pernas abertas para manter o equilíbrio, ela descia golpes de enxada no meio do quintal quando, entretida em sua tarefa de abrir covinhas para depositar sementes de coentro, ouviu que o neto vira um sapo.

Sem esperar, a avó, que dizia sofrer de reumatismo, soltou a enxada, segurou o vestido na altura da barriga, saltou a cerca, chegou à calçada e deu um pulo, desses pulos de cinema, no tapete vermelho.

O menino segurava-se para não cair na risada. Armada de um cabo de vassoura, ordenou que continuasse cavando enquanto ela, à porta da cozinha, vigiava o sapo que estaria ali por obra e graça do maldito vizinho da direta.

A vizinha da esquerda, que lhe presenteara o cachorrinho, colocou a cabeça por cima do muro. Ouvira gritos e correrias. A avó falou do sapo no quintal e, aproveitando, encetara uma discussão sobre um cabaré que abrira nas redondezas. Onde estava a polícia que não via? Que igrejas e pessoas de bem deveriam se reunir para expulsar aquelas mulheres...

Contrariado, o neto continuava cavando, batendo desmazeladamente a enxada no chão. Ouviu a velha dar um grito. Assustado, o cachorro saíra em disparada de perto dela enquanto ela, em câmera lenta, caía de costas.

Segundos depois, a avó informou que sentira no pé o contato de uma pele úmida. Nem olhou para o chão nem se conteve: sentiu um frio na barriga, uma moleza nas pernas, a vista escureceu, a respiração faltou, a cabeça rodou...

* Publicado originalmente no Jornal de Assis (Assis – SP) de 1 de novembro de 2007.