A pinta e o pinto

A pinta estava lá desde sempre, uma espécie de marca registrada sobre a clavícula esquerda. De repente, começou a crescer e suas bordas ficaram irregulares. Olhava-me no espelho e vinha o frio na barriga: e se ela tivesse se transformado num melanoma, tumor de alta malignidade? Além de casos de câncer de pele serem freqüentes na família, expus-me muito ao sol na infância, numa época em que a humanidade ainda não atinara para os efeitos nocivos dos raios solares. Na minha imaginação, a pinta atingia proporções dantescas e minava a coragem para ouvir do especialista o prognóstico sombrio.

Na última quinta-feira, finalmente fui ao dermatologista. O médico, colega de turma e amigo há mais de vinte anos, passou-me um sermão: como eu tinha deixado a pinta alcançar aquele tamanho, eu precisava me cuidar mais. Pior que a carraspana foi o ar de gravidade que ele assumiu. Com ou sem pinta, a coisa parecia preta!

Na mesma noite, um novo inquilino me aguardava em casa. A professora da minha filha mais nova dera um pintinho a cada criança como presente de boas vindas no primeiro dia de aula. Mesmo agradando à turminha, receio que muito pai vá olhá-la atravessado pelo resto do ano. É que um pinto requer uma enorme mobilização. Casas escondem perigos: escadas, pisadelas, movimentos abruptos de portas, cachorros à espreita... E o pinto piava e sujava tudo! As meninas mais velhas pressionaram a mim e ao pai para exilar o barulhento e irrequieto hóspede. Não cedi: pobre garotinha, órfã recente de avó, com o destino da mãe pendente até o laudo anátomo-patológico da pinta... Quem cuidaria dela eu não sabia, mas ela se distrairia cuidando do pinto, caso algo acontecesse a mim.

Pinto e pinta me perturbaram o fim de semana todo: não escrevi, não li, nem preparei aula inaugural. O pinto, ao contrário, parecia imperturbável: foi conosco ao clube, restaurante, supermercado. Feliz, nem se deu conta da impaciência da nova dona. Sem ânimo para reclamar do pinto, eu imaginava que futuro a pinta me reservava. Devo ter repetido tanto as instruções pós morte que minha filha mais velha encerrou o assunto: “Quem não entendeu ainda levante o dedo.” Dedos apontaram para o chão em mudo protesto.

Hoje recebi o laudo do exame da pinta: era um tumor benigno de pele. Aliviada, reassumi o pulso firme em casa: comuniquei que arranjaria um novo lar para o pinto. Ninguém contra-argumentou.

Passado o susto, percebo que o fim de semana foi uma pausa para reflexão. É reconfortante sentir-se amparada pela família nos momentos em que o medo invade a alma da gente.

Maria Paula Alvim
Enviado por Maria Paula Alvim em 11/02/2008
Reeditado em 12/02/2008
Código do texto: T855529
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