Quem não se comunica come batatas
Minha mãe adora contar esta história com um misto de orgulho e diversão, porém, a cada vez que ela conta, minha certeza aumenta: a necessidade de comunicação me é intrínseca desde muito cedo. Pois a história, pela qual só recentemente deixei de corar a cada vez que é contada, aconteceu há muito tempo atrás, quando eu, garotinha de 11 anos, andava apaixonada por um menino da mesma idade que morava na vizinhança. Do que me lembro dele, e de que talvez nunca vá me esquecer, são os olhos miúdos e levemente amendoados, beirando o estrabismo. E um cachinho de cabelos castanhos claros caindo sobre a testa. Charme total.
Nossa casa, extremamente simples, ficava numa rua alta, sobre um terreno de forte declive. Era uma casinha térrea com apenas um quarto, situado na frente, como tantas outras nos arredores; uma sala relativamente grande (ou serão minhas lembranças sob o ponto de vista infantil?) com um pequeno terraço de cerâmica vermelha precedendo a porta com postigo; uma cozinha revestida com tinta impermeável até meia altura, um banheiro (com banheira de ferro) e uma lavanderia nos fundos. O piso ficava um pouco abaixo do nível da rua, mas como o terreno era muito inclinado, a última peça quedava-se bem alta com relação ao piso do quintal, tanto que, sob ela, havia um outro cômodo, que chamávamos de porão: na verdade, era a oficina onde meu pai consertava e inventava de tudo, e onde eu aprendi a usar chave de fendas, martelo, morsa e até soldador com certa habilidade.
Pois a área aberta em duas faces desta lavanderia – que chamávamos de “tanque”, já que era lá que o dito cujo ficava - era tão alta que nos legava uma vista privilegiadíssima de metade da zona oeste de São Paulo. Na época, muitas ruas com casinhas simples como a nossa e pouquíssimos prédios, todos eles baixos. E pela face lateral eu via, graças à diferença de altura entre as duas edificações, a casa do meu querido.
Ele morava uma casa após a nossa, nos fundos de um terreno comprido (todas elas tinham um terreno comprido, de meio quarteirão), e sua senhoria na casa da frente. Emendando as duas casas, de cima abaixo, um quintal estreito, ladeado por muros baixos, já que naquela época ainda não havíamos sido condenados à prisão. E tudo aquilo exatamente na mira da área aberta do “tanque”.
Minha necessidade de comunicação, manifesta desde a mais tenra idade, fazia-me soltar bilhetinhos na caixa de correio de minha vizinha mais abonada: “Querida vizinha: gostaria muito de conhecer sua casa. Beijos”. E a vizinha, dona Téa, uma italiana fugida da guerra com a família, deixava-me entrar entre sorrisos e ainda me dava biscoitos. Talvez tenha advindo daí a idéia de que a comunicação me abriria, literalmente, as portas... Pensando nisso, não tive dúvidas: escrevi inúmeros bilhetinhos com declarações de amor, da forma como pode ser uma declaração de amor aos 11 anos, e resolvi entregar ao garoto dos cachinhos. A forma inusitada é que sempre motivou o relato da tal história por parte de minha mãe: amarrava-os em batatas, que sempre havia em bom número em casa, e atirava-as com força, de lá de cima do “tanque”. Algumas efetivamente chegavam ao destino – o quintal do garoto – mas muitas apodreciam na casa da dona Téa, justamente a vizinha que se interpunha entre a minha casa e a dele.
O interessante é que me lembro muito bem do ato de atirar as tais batatas-correio, de acenar ao garoto nas poucas vezes em que o vi pegar algumas delas, de quando minha mãe se deu conta de que as batatas sumiam muito antes de virarem purê. Mas, oh crueldade, não me lembro de nada do que escrevi, e muito menos se a comunicação surtiu efeito. Talvez eu nem soubesse que tipo de efeito eu desejava – quem sabe apenas informar-lhe do meu sentimento? Bem, isso devo ter conseguido, pois ele sempre me tratou com uma deferência que não manifestava às outras garotas da rua. A necessidade de comunicação, neste caso, sempre foi maior que o objetivo a ser atingido.
E continuo nesta seara, já que preciso comunicar-me. E é por isso que escrevo: não tenho objetivo maior do que apenas escrever. Se serei lida ou não, compreendida ou não, não me é fundamental saber. Só desejo ardentemente que as batatas não apodreçam.