LEVEZA DE SER

Ela estava com dezessete aninhos! Dezessete aninhos e passava aqui toda semana, na porta da mercearia. Olhava para dentro, sorria tímida, baixava os olhos e seguia, mão na barra da saia solta, leve, morena, linda!

Duas semanas sem aparecer. “Será que vem hoje?” Sumiu, bruma suave das tardes agora sombrias. Canção minha de delicadeza.

Carolina, minha Carolina. Muito tempo se passou. Deixei-a faz 20 anos e ela está tão linda quanto antes. Minha doce Carolina.

Precisou acontecer o quase inesperado, inominável, a passagem, a quase ida, para que Carolina fosse minha, foi quase...

Era verão, quente, úmido, modorrento. Dias ruins aqueles. Comércio, gente pouca. Surgiu por aquelas bandas da roça a doença ruim, febre que não passa, dá canseira, cama, suor. Carolina caiu. Olhos semi-serrados, deitada na cama. Quarto escuro, pouco vento, mas ela sentia frio, muito frio. Seus lábios ressecados da febre partiam e tremiam. Doutor apareceu, disse que não havia mais jeito para ela, paratifo é doença da época, início de século tenebroso, na roça não tem forma de curar. A menina não vai escapar desta. Ele foi duro, ele foi enfático, mas Carolina não se entregava.

Mãe gritou menino e mandou chamar o padre: extrema-unção. “Padre, mandei já fazer a mortalha. É de Nossa Senhora da Conceição.”

“Jerônimo, Jerônimo...” Carolina dizia meu nome, dizia meu nome com suavidade só dela. E eu nem sabia, nem sabia o que se passava com minha leve Carolina.

“Ô seu matuto! A menina não pára de falar seu nome. O pai pede, vai lá, ela tá vai que não vai. Anda logo, se apresse, corre!” Menino teve trabalho naqueles dias, muito recado, correria.

Vi Carolina no leito de morte, alva, leve, linda.

Saí de sua casa sentindo o sal do meu medo. Verei Carolina novamente? Vi sua mortalha, tecido suave, pérola, capa azul, forte, como só Carolina devia ser.

Outro médico apareceu. Luz! Clara luz vinda de outro espaço, novas palavras de esperança fazem brilhar os olhos da mãe. Rugas apareceram em tão pouco tempo de vigília. Orações, novena, ladainhas, “Santa Imaculada Conceição, rogai por nós!” Mandaram remédio em teste da cidade, Carolina tinha que experimentar. Ela não pôde ir, mas trouxeram, ânimo de vida nova.

Semanas, espera, olhos vagando no vazio da porta.

“Jerônimo! Jerônimo! A menina! A menina venceu! O pai chama pra conversar, cê vai?”

O menino voa rua acima me deixando atarantado. Uma chama, um tremor, um balbucio: “Carolina, m-e-u-a-m-o-r! Me espere!”

Dois meses e estávamos no altar, eu e Carolina, mãos suadas de desejo e alegria. Ela estava linda, estava leve, serena, no seu vestido de noiva, do tecido suave, pérola, mortalha transformada em sonho que durou a vida toda.

Minha doce Carolina, não podia mesmo ter me deixado antes do caminho longo a percorrer: filhos, netos, vida! Suave percurso que trilhei ao seu lado. Tive que deixá-la, Carolina. Você, que lutou contra ela, não pôde evitar que ela me levasse. Leve Carolina, Minha alma espera que você complete seu caminho. Minha Carolina, 92 anos de força e paz.