ADÃO VENTURA, POETA NEGRO

AQUELE OUTRO POETA NEGRO

Nelson Marzullo Tangerini

A poesia negra brasileira não cessou com Luís Gama – poeta satírico, filho de uma negra e um português e vendido como escravo pelo próprio pai -, João da Cruz e Sousa ou Solano Trindade. Na verdade, ela continuou existindo com Milton Nascimento, Cartola, Gilberto Gil, Paulinho da Viola, Carlos Cachaça, Grande Otelo (*), Nelson Sargento, Monsueto – que conheci quando tinha 12 anos -, Ataulfo Alves – que foi amigo do meu pai, Nestor Tangerini, e nosso vizinho -, entre outros. Caldas Barbosa, que tinha sangue negro em suas veias, aliás, antes de Cruz e Sousa e Solano, com suas modinhas e lundus, brilhava e encantava os lusitanos no Brasil e em Portugal, para onde foi definitivamente.

O poeta Adão Ventura é uma prova viva disto. E abro aqui uma sugestão para que alguém, neste país, com sangue negro e uma dívida sem tamanho para com os negros, tratados como animais de carga e irracionais por ingleses e portugueses, escreva uma tese de mestrado ou doutorado sobre a poesia afro-brasileira.

Adão Ventura Ferreira Reis, que nasceu em Santo Antônio do Itambé, no interior de Minas Gerais, em 1946, assim como Cruz e Sousa e Solano, foi um militante da causa negra. Sua poesia, impregnada de questões da negritude, revela um poeta sensível, sonoro, fluente, preocupado com a situação do negro no Brasil e no mundo. Iniciando os períodos com letras minúsculas e escrevendo África – sempre – com letras maiúsculas, Ventura estimula, com elegância, a altivez e a dignidade do povo negro, que jamais pediu ao europeu para ser escravo no Brasil ou na América do Norte. A projeção do negro nas Américas, como sabemos, é lenta, lentíssima, difícil. O negro, vigiado, policiado por todos os lados, vê-se como O Emparedado, do texto em prosa de Cruz e Sousa. O Brasil, hipócrita, ainda não assumiu o sangue negro a correr em suas veias; o sangue daqueles africanos humilhados pela escravidão, um crime tão hediondo quanto o Holocausto de judeus na Alemanha de Hitler.

Castro Alves, poeta romântico brasileiro, em O Navio Negreiro, descreve a humilhação sofrida pelo negro desde a sua captura em continente africano:

“4a.

Era um sonho dantesco... O tombadilho

Que das luzernas avermelha o brilho,

Em sangue a se banhar,

Tinir de ferros... estalar do açoite...

Legiões de homens negros como a noite,

Horrendos a dançar...

(...)

5a.

Senhor Deus dos desgraçados!

Dizei-me vós, Senhor Deus!

Se é loucura... se é verdade

Tanto horror perante os céus...

Ó mar! Por que não apagas

Co´a esponja de tuas vagas

De teu manto este borrão?...

Astros! noite! tempestades!

Rolai das imensidades!

Varrei os mares, fufão!

(...)

Homens simples, fortes, bravos...

Hoje míseros escravos,

Sem ar, sem luz, sem razão...”

Sobre Adão Ventura, escreveu Manuel Lobato: “A iniqüidade do mundo e o mistério da vida gritam na sonoridade de seus versos”.

Eis alguns exemplos de sua poesia militante:

“Para um negro

para um negro

a cor da pele

é uma sombra

muitas vezes mais forte

que um soco.

para um negro

a cor da pele

é uma faca

que atinge

muito mais em cheio

o coração”.

e

“Das biografias – Um

em negro

teceram-me a pele

enormes correntes

amarraram-me ao tronco

de uma Nova África.

carrego comigo

a sombra de longos muros

tentando impedir

que meus pés

cheguem ao final

dos caminhos.

mas o meu sangue

está cada vez mais forte.

tão forte quanto as imensas pedras

que meus avós carregaram

para edificar os palácios dos reis”.

Formado em direito pela Universidade Federal de Minas Gerais, UFMG, em 1973, Adão, a convite da University of New México, foi para os Estados Unidos, onde lecionou literatura contemporânea.

Embora pouco lido e pouco divulgado – por ser negro? -, Adão publicou diversos livros, dentre eles A cor da pele, Texturafro e As musculaturas do Arco do Triunfo. São livros difíceis de serem encontrados. As editoras, pouco preocupadas com a poesia negra, não os reedita. E ninguém os encontra em sebos.

Adão Ventura participou de várias antologias e seus poemas foram traduzidos para o inglês e o alemão. Um de seus poemas, inclusive, foi incluído na antologia Os Cem Melhores Poetas Brasileiros do Século, organizada por Ítalo Moriconi para a Editora Objetiva, de São Paulo.

Em 2002, o poeta negro, publicaria mais um livro difícil de ser encontrado: Litanias de C Cão.

Ainda desconhecido por parte de muitos professores de literatura, alunos de Letras, escritores e jornalistas, Adão faleceu em junho de 2004.

Como um poeta tão grande e tão nobre pode ficar de fora dos cursos de Letras, de livros de literatura e da “rodinha” literária?

O jornal Estado de Minas, felizmente, comentou seu falecimento, em 2004, fazendo uma retrospectiva de sua vida e de sua obra, tão justamente lembrada.

Nelson Marzullo Tangerini, 52 anos, é professor de Língua Portuguesa e Literatura, escritor, poeta, compositor e fotógrafo. É membro do Clube de Escritores Piracicaba.

(*) Grande Otelo, ator, poeta e compositor trabalhou nas peças No tabuleiro da baiana e Gol!, de Nestor Tangerini.

Nelson Marzullo Tangerini
Enviado por Nelson Marzullo Tangerini em 08/02/2008
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