DIVERSÃO INGÊNUA

Voltávamos para casa depois de um dia inteiramente cansativo de curso. O ônibus, no ponto em que pegávamos, até que não se encontrava cheio, pelo menos essa linha nos dava um certo conforto. A viagem era longa até o bairro onde estávamos hospedados, da PUC até Santa Lúcia era um bom pedaço. Vida de estudante é assim, sempre tem alguém que dá um apoio, cedendo um espaço no quarto, desalojando sobrinhos, na mesa do jantar, na geladeira. O que seríamos de nós estudantes se não fossem eles, irmãos, amigos, simpatizantes!

A volta para casa, além de exausta, era meio tensa. Para economizar a passagem, pegávamos apenas um ônibus, isso no mês de janeiro, horário de verão, em que podíamos descer a pé as ruas sinuosas e desertas do bairro da minha irmã. No inverno não tinha jeito, tínhamos que pegar dois ônibus. Nessa linha, a do verão, o ônibus ia pela Amazonas e passava para a Raja, onde tem um aglomerado urbano, morada de indivíduos de baixa renda: a favela.

Pois bem! Eu e minha amiga, sentadas confortavelmente dentro do ônibus, conversávamos animadamente sobre os conteúdos ministrados naquele dia e, como acontece diariamente, vimos garotos saltitantes, alegres, farristas, desses que correm no meio dos pedestres de olhos arregalados e mulheres de mãos agarradas nas bolsas. Meninos de roupas quase sempre da mesma cor, a cor das ruas, da fuligem, do lixo, do desprezo, do menosprezo. Eles saltitavam tanto, que resolveram saltitar para cima do nosso ônibus. Primeiro, seguraram-se nas janelas e portas pelo lado de fora. Em todo ponto que o ônibus parava, eles corriam para o meio das pessoas, pegavam um salgadinho de um, um resto de suco de outro, cedidos espontaneamente, e voltavam felizes para se pendurarem no ônibus e seguirem viagem.

Olhei para minha companheira de viagem e vi em seus olhos o desespero se aproximando. De repente, os meninos começaram a escalar o ônibus. Um ficou em pé na janela do nosso lado. Os pés descalços mostravam o que sobrou da sua jornada diária, uma imundície sem par. Sua alegria se completaria, sem dúvida, no momento em que começou a “acariciar” os cachos dos cabelos de minha amiga. Mesmo não vendo seu rosto, ouvíamos a risadinha maliciosa daquele que sabia estar provocando arrepios de pavor em alguém bem mais frágil que ele, bem menos experiente na vida que ele.

Falei baixinho para ela não se mexer, fingir que não estava ligando, quem sabe, assim, ele pararia com aquela tortura. Não demorou muito e a galera continuou sua aventura indo surfar sobre o ônibus. Na televisão, já vi muitas dessas cenas, não me escandalizei o suficiente diante daquelas cenas que mais pareciam de filmes de Hollywood. Ali, naquele momento, senti que a realidade gela o sangue, entorpece os músculos, enrijece as pernas, tranca os dentes, paralisa a língua. Fiquei atônita, sem saber qual seria a próxima ação dos meninos malabaristas.

Na parte de cima, vi que eles se mantinham meio quietos, agarrados onde podiam, apenas olhavam pelas gretas da janelinha superior, aquela do teto que serve para entrada de ar.

-Tia, ô tia!

Víamos seus olhos chamando-nos. Tia! Imagine! Que diferença do tempo em que eu era chamada de tia pelos meus alunos de pré-escola. Que realidade diferente!

Um entrou pela janela, andou pelo corredor, pulou a roleta, deve ter sentido os olhares de medo, desespero, terror de muitos ali. Muitos, sim, não todos, pois os que se acostumam com o dia-a-dia da capital, seus moradores descalços, seus sorrisos marotos, sua ameaça constante, ficam anestesiados, alheios, estagnados. Nós, do interior, que desconhecemos a vida perdida, sofrida, saltitante dos meninos/homens/pivetes dos grandes centros fazemos a festa para os olhos deles. Demonstramos tudo no nosso olhar, na nossa imobilidade, nossa impossibilidade.

E eles desceram do ônibus saltando, foram para seu povo, suas ruas, suas casas, seu lugar. Tinham ganhado o dia.