Orgulho

Ele achava que ela era escandalosa, falava alto demais e não sabia como se portar em certas situações. Parecia que a vida para ela era uma piada constante. Às vezes ele sentia vergonha, mas não falava para não magoá-la.

Ela achava que ele era o cúmulo da educação, que tudo aquilo não era necessário. De vez em quando era bom chutar umas portas, falar uns palavrões, mandar um ou dois pra lá. Mas ele era o equinócio da polidez, o ápice da paciência. E isso era irritante, porque ela se sentia "gentinha", sem modos, sem jeito pra viver em sociedade, sentia que precisava adaptar seu tom de voz e suas idéias para que ele tivesse orgulho da mulher que o acompanhava.

Pra falar a verdade, eu que estou de fora e posso dizer o que quiser porque essa briguinha de casal não me atinge, os dois eram pessoas normais. Ele não era tão educado a ponto de ser chato e ela nunca teve aulas de etiqueta, mas sabia, sim, como se comportar. Tinham suas manias, seus chiliques, seus gostos e desgostos, e dividiam um sentimento. Bem normal.

Naquela noite ele não elevou a voz, mas disse o que queria. Ela não esboçou qualquer reação, porque achou que tudo aquilo era inútil.

--- Você foi grosseira.

--- Não sou grosseira com meus amigos. Eles entendem que é brincadeira, e eu chamo de intimidade. Não tenho que estender um tapete vermelho pra eles.

--- Mesmo assim, eu não gostei...

--- Eu sou assim...

Quem já teve uma discussão à toa, sabe que vários outros assuntos sempre vêm à tona, principalmente aqueles que achamos que foram resolvidos pela quantidade de saliva, mas que ainda estão ali, mornos, esperando uma faísca. Foi por isso que eles conversaram por horas sem alterar o tom de voz, pra não chegar a lugar algum. Parecia uma cena de chá inglês às 5:00.

Levantaram cansados, com dor na língua, a garganta seca, e decidiram, sem comunicar um ao outro, que era o fim. Aquele ponto que não batia entre eles era mais importante do que pensavam e sentiram um certo alívio por ainda não serem casados.

Assim, com muita educação, não se viram mais. Perceberam, de repente, que os anos de convivência saturaram suas personalidades, moldaram pessoas que, por origem, não eram.

Ele decidiu não procurá-la e ela achou que precisava recuperar sua essência.

Os anos passaram, Leda arrumou um bom emprego em outro estado, tinha uma vida confortável e dois filhos de um casamento de 22 anos. Ramon formou-se engenheiro químico, era excelente profissional (claro que nunca brigou no emprego, nem nada parecido), ascendeu sem paradas e formou uma família também.

O encontro ocorreu porque um amigo em comum faleceu na cidade onde se conheceram e onde ele ainda vivia. Vinte e cinco anos de distância derretidos no espaço de poucos centímetros um do outro.

Cordialidade é a prima irônica da educação. É o que se usa no lugar de gritos, reações puras e exageradas, e impulsos animais, que é nada mais do que somos. O diálogo foi frio. Profissões, filhos, como você está diferente, mas igual, e seus pais, coisas do tipo. Quando as perguntas insistiram na direção do passado, das lembranças engavetadas e lacradas, fazendo com que ambos deixassem escapar perguntas como "você ainda come pizza no café da manhã?" ou "você ainda dorme de meia até no calor?", eles se afastaram, porque aí nem a educação nem a prima cabem mais.

Quando as duas longas horas de desconforto finalmente passaram (porque o amigo foi enterrado num calor infernal), e eles se viram novamente longe um do outro, o nó na garganta dele incomodava tanto quanto amigdalite, e ela disse aos filhos que os olhos vermelhos eram conjuntivite. Dupla, óbvio.

Leda e Ramon morreram na mesma manhã, na mesma hora, com a mesma coisa na cabeça, em cidades diferentes, com doenças iguais. Não sei ao certo em qual dia e ano.

Amigos que souberam da história que tiveram, juntaram a folha de papel que estava na cama de cada um para formar uma frase. Leda escreveu para Ramon o começo de uma carta: "Queríamos viver um para o outro..." e Ramon rabiscou o final: "... mas não soubemos", mas ainda não tinha escrito o começo.

Meio tarde, não? O orgulho corrói, o tempo não espera, a ilusão criada vira ar. E tudo poderia ser tão diferente...

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Moral: O ser humano tem pensamentos tortos que circulam quadrados numa cabeça dura. É daí que vem a expressão. Do orgulho.