Canção Revisitada

Nada do que vi aquele dia me compensaria mais. Um dia como outro qualquer. Mais um dia de pesquisa na Biblioteca Pública para minha monografia da faculdade. Trabalho árduo, mas necessário e compensador no futuro, espero. Normalmente, chego, vou até o fundo da sala de pesquisa, num lugar tranqüilo, ler e escrever, ler e escrever.

Várias são as pessoas que costumam freqüentar aquele lugar, muitos interesses, muita procura por saber. Mas aquele dia alguém me chamou a atenção.

Andava pelas estantes de livros apenas passando a mão sobre eles. Olhando atentamente, como se procurasse alguma coisa valiosa, especial. O indicador passava pelos títulos devagar, os olhos, atentos, quase não piscavam. Ele se abaixava, via os livros da estante de ficção, ficava na ponta dos pés, lia os nomes de aventuras. Virava-se para a outra que estava em suas costas, os clássicos estavam lá. Seguia à frente, História, Geografia, Artes! Tudo era observado meticulosamente! Normalmente, um freqüentador de biblioteca vai até lá para um determinado fim, para uma determinada pesquisa, com um objetivo específico. Aquele ali parecia não se importar com nada, nem com o tempo, queria apenas olhar, examinar, sentir os livros. Sentir os livros! Nunca pensei nisso. Podíamos sentir os livros! Eu vi isso naquele homem.

Ele aparentava ter passado dos quarenta anos, pessoa modesta pelos trajes que usava. Chinelos nos pés. Camisa surrada. E estava ali, na biblioteca, sentindo livros. Como pesquisadora, senti curiosidade de ir até lá conversar com ele, mas temi desfazer o encanto.

Levantei-me e fui até a bibliotecária, com a desculpa de saber sobre um autor para meu trabalho. Perguntei a ela sobre aquele moço, o que ele estava procurando. Ela me disse uma das coisas mais incríveis que já escutei. Aquele homem passou a vida inteira sem saber o valor das palavras, sem saber decodificar os sinais que nós já aprendemos na infância, com seis, sete anos, aquele homem tinha acabado de ser alfabetizado, tinha acabado de dar sentido àqueles símbolos estranhos para sua visão já cansada do mundo. Aquele homem ia à biblioteca sentir os livros, ver as maravilhas que as palavras podiam proporcionar, quantos livros, quanto conhecimento, quanta sabedoria.

Fiquei pensando em quanto tempo ele gastaria até poder colocar em dia todo o tempo perdido. Aquele homem tinha aprendido o valor das palavras, o tesouro escondido nos livros, a vastidão da cultura.

Todos os dias ele ia lá. Todos os dias ele tocava os livros antes, depois escolhia um e levava para ler, em casa, talvez. Todos os dias ele devorava, sim, com voracidade, as letras, palavras, sinais de pontuação, páginas e mais páginas de puro conhecimento, de pura ânsia pelo desconhecido. E eu pude presenciar isso. Pude presenciar o encanto, a magia daquele que descobriu o mundo, ou um mundo paralelo que sempre existiu, mas não fazia parte da sua vida, que o excluía da vida. O mundo para ele se tornou uma linda canção. Canção que dá sentido a sua vida.

E eu peço licença para mostrar o que vi, o que senti no brilho dos olhos do homem que aprendeu a ler. Licença a Thiago de Mello, sua canção é uma das mais lindas que já vi.