Era uma linda cidade
Era uma linda cidade.
Pérola encravada num vale esmeralda. De dia, céu claro, sol forte, muito verde, muitas flores. Á noite, céu azul turquesa, límpido, coberto de estrelas; luar bem definido, estrada enluarada margeada de fogueiras altas de cana queimando. Cheiro de melado. Às vezes estranho odor impregnando o ar.
Verão de sol escaldante e inverno de geada.
O rio largo, calmo, visto de toda a parte.
Ruas limpas, largas, calçadas; árvores tratadas; serviços eficientes. Sem trânsito, sem poluição, sem ruídos, sem assaltos, sem crimes.
Cidade de gente sentada nas calçadas, no fim da tarde. Canto de pássaros. Roçar de vento nas árvores, barulho de vento arrastando folhas no chão, no telhado.
Cidade de quilômetros e quilômetros de canaviais; de caminhões de bóias-frias de cabeças cobertas por panos, camisas de xadrez, calças largas e sapatos sujos de barro.
Cidade de casas vermelhas, de chão vermelho, de gente vermelha de pele quebrada pelo sol, pela secura do ar.
Cidade de gente doente: de asma, de dores, de defeitos físicos, de pressão alta, de falta de sono, de ansiedade, de tristeza, de tédio, de insatisfação de não sei lá o quê. Postos de saúde lotados, ambulâncias levando e trazendo gente de todo lado, médicos atendendo, atendendo, atendendo... gente de manhã, de tarde, de noite, de madrugada. Aparelhos de inalação sempre ocupados: falta de ar.
Cidade de zumbis insones consumindo Lexotans, Diazepans, Valiums, Loraxes, Dienpaxes. Prateleiras de blocos de receita azul.
Cidade convulsiva, de caixas e mais caixas de Fenobarbital, Fenitoína, Comital, Neozine.
Cidade de gente que se conhece, mas não é amiga.
Cidade de gente que vai à missa, mas não é cristã.
Cidade de gente que sorri pra você na calçada, mas não deixa você entrar em casa.
Cidade de gente que tem tudo, mas a alma é vazia.
Cidade de gente seca, árida, que não quer o novo, que rejeita o desconhecido, que tem medo do “estrangeiro”; gente que se droga, se embriaga, se reprime, se proíbe, que se fecha em casa, que se enforca. Gente cega para as cores do sol, do céu, das árvores, do rio. Gente que ensurdeceu por causa do sino e do alto falante da igreja e não escuta as boas novas, o canto dos pássaros, o roçar do vento, as batidas do seu coração. Gente muda para as palavras de dar, doar, oferecer; que só conjuga o verbo querer na primeira pessoa do presente: Eu quero.
Plantas secas. Raízes. Mortos-vivos, numa linda cidade.
Aqui e ali, raros sinais de vida...
14/07/94
“..e o rio que vai me levar não passa na sua cidade.
O paraíso começa. É só começar o sorriso...”.