Mordida
- O que aconteceu?
- A Jandira, mãe, a Jandira...
- Desembucha. O que foi? Fala logo pelo amor de Deus!
- A Jandira perdeu...
- Perdeu o quê?
- A tartaruga mordeu-lhe o dedo mínimo, acho que extirpou...
- Não pode ser.
Corre do banheiro seminua atrás de gaze, mercúrio e esparadrapo. Ainda bem que o Antunes não está em casa. Jandira pranteando aos quatro ventos o infortúnio. Segue até o quintal e observa a tartaruga demorada e pacífica com seu ensinamento de tempo. Estava sonolenta como ela da noite de carnaval. Tinha medo de Antunes com suas reações nervosas, angustiantes. Talvez ainda batesse na pequena Jandira soluçante, mas observando a paz do réptil suavizou o seu medo sem sequer ter avistado a mão da criança. A ilusão dos anjos perdurava sobre a noite de batuque ainda na memória.
Depois do curativo sentou a menina no sofá para assistir a Orquestra de Paris pela televisão. Sabia que a criança gostava de todo o tipo de musicalidade. Ficaria lá com os olhos marejados ouvindo a ópera e longe dos brinquedos de areia com o dedo enfaixado.
Nada grave. Apenas um beliscão.
No escritório a secretária repassa o telefone. O Antunes atende com rosto sério. Expressão de acontecimento grave. Era o vizinho ligando para contar o fato no aumentativo inexato. Jandira havia perdido a mãozinha. Pobre se encontrava gravemente ferida aos prantos no quintal.
- Voa para casa, Antunes!
Nervoso sequer vestiu o paletó. Seguiu aumentando o perigo de acidente em escala pela estrada. Era um tipo explosivo. O rosto sempre em fogo ainda com as dívidas atrasadas pelo feriado. Com os juros da tradição subdesenvolvida roendo seus nervos. Temeu que o plano de saúde não cobrisse o dano para acidente com tartarugas.
Quando chegou a própria Jandira quem veio até ele com o ferimento leve contando tudo.
- O que foi minha filha?
- Foi uma mordida.
- Quem mordeu?
- A tartaruga...
Ah! Suspirou aliviado. Pior se fosse à mordida do leão. Pelo menos agora não era o leão na situação imposta.