Deus, Dostoiévsky e as Vocações Perdidas

     Há no Recanto escritores com intenções literárias belíssimas, mas cuja vocação é o púlpito.  Profetas e não poetas, procuram nos arrebanhar, nos convencer pela elocução religiosa, pela inspirada e espontânea mensagem bíblica.

     Trata-se, no entanto, de uma sinceridade emprestada de infinitos outros escritos, parábolas e sermões, todos padronizados, uniformes, "rezando pela mesma cartilha" dos seus. Repetem eles, enfim, todos os discursos afins, que falam da grandeza de Deus, da necessária humildade, das glórias da conversão...

     Impetuosos pregadores:
     Conhecemos bem esse discurso universal --- e o amamos, acreditai. Respeitamo-lo sabiamente, crêde. Só que daí a reconhecer em vossos textos a mínima excelência literária (transfigurada em beleza de imagens, originalidade e algumas qualidades imprescindíveis ao estilo, como: correção, coerência, clareza, coesão, concisão e elegância), esse pecado crítico não vamos cometer mesmo, jovens profetas.
     Tentais colocar a Literatura a serviço de Deus, o que não funciona literariamente...

     Existindo no poema uma mensagem não-poética, ela não prejudica, mas valoriza o texto, desde que não contenha elementos panfletários, moralistas ou doutrinários que se sobreponham à sua finalidade literária.
     Em Literatura, Deus às vezes atrapalha.  Refiro-me aos escritores que, pelos séculos, produziram poemas-breviários ou prosa sacrossanta e nada mais, construindo barreiras morais à livre inspiração, às águas barrentas da cristalina poesia. E exalto os Castro Alves, os Bocages, os Khayyáns, pelos versos que, ainda que a Deus dirigidos, nos tocaram igualmente.

     Vós sem dúvida habitareis o Azul; não assim vossa literatura: esta marcha inexoravelmente rumo ao Nada negro.
     Direis porém: “Ô Jô, há grandes escritores cuja obra se acha imersa em Deus, tal a freqüência e profundidade Dele em seus livros. Basta abrir a “
Divina Comédia”, o “Fausto”, o “Crime e Castigo”... E então?!"
     Concordo, jovens.

     Refletirei, se me permitis, sobre um sonho que tive, envolvendo Deus, Dostoiévsky e os homens. Esta criatura, pegando um dia seu Criador pela mão, fê-Lo percorrer seus romances e, ao fim, Lhe disse:
     --- Eis Tua Obra, Senhor! Comenta-a, peço-Te!
     (Fiodor estava na verdade acertando as contas, dando o troco, devolvendo ao Altíssimo tanto sofrimento desnecessário e sem nexo, seu e da gente russa.)
    Constrangido e estupefato, o Senhor exclamou:
     --- Mas estes seres independem de Mim para existirem! Que luz os ilumina? Que céu os acalenta? Que lógica os conduz?
     Filho da Rússia: não concedi à Humanidade tanta alegria, arte, autonomia, beleza, bondade, ciência, consciência, delírio, humanidade, divindade, grandeza, ideologia, inocência, justiça, liberdade, paixão, paz, perdão, piedade, poder, poesia, prazer, razão, redenção, renúncia, saudade, sofrimento, solidão, sonho, ternura, transcendência, utopia --- tantos "deslimites" enfim!, pois assim os tornaria deuses!
     E ainda: que feios defeitos Eu vejo, que não lhes coloquei?
     --- Perdão, Senhor, há um equívoco.
     --- Sim, Dost?
     --- Esta não é a Humanidade, mas a minha projeção dela. Tais entes, que animei, saíram de Ti. Manipulei-os, simplesmente.
     --- Mas Minha intenção era tão pura! Como a desvirtuaram tanto?
     --- É que lhes deste também o livre-arbítrio. Descobriram que podiam agrupar-se em hordas de cossacos, de mujiques, deixar suas aldeias longínquas, atravessar as estepes do ressentimento, da ambição, da crueldade, do pecado, do orgulho, da perfídia, da vaidade, invadindo desordenadamente a metrópole das nossas almas...
     --- Pois bem, ordeno-lhe que destrua a sua insuportável obra-de-luz!
     --- Impossível, Senhor, porque ela está ou estará em todos os lares da Terra, até o Fim dos Tempos. Só o Senhor pode fazê-lo. E sei que não a destruirás, pois amas os justos e os sofredores. És, numa palavra, bom.
     --- Bom... A propósito, Dost: as suas asas? A sua ausência do Paraíso?
     --- Grande Sábio, claro que conheces as respostas, até das perguntas jamais formuladas...
     As asas emprestei-as ao povo russo, que entrou em mais um século de tribulações (dialogo contigo em julho de 2007).
     Já a minha permanência aqui se dá para interceder de perto pela nossa gente pobre e os humilhados e ofendidos; para apagar da memória coletiva as recordações das casas dos mortos, para manter intactas as memórias do subsolo, dos homens subterrâneos que nos descobrimos; para exorcizar os involuntários demônios, para exigir exemplares castigos aos múltiplos crimes, para purificar e unir nossos grotescos irmãos...

     Meu Deus: minha vida foi uma só oração! Deixa-me estar com meu povo. Errei? Sim, e muito. Porém todos --- vivos e mortos --- já me perdoaram. Como a todos perdoei.
     --- Perdoou até aquele canalha do czar?!
     --- Até o magnífico Nicolau I, agora pó e em breve nada. Aliás, tenho um pedido.
     --- Diga, fiel servo meu.
     --- Falaste acima em generosidade. Pois bem: suplico-Te o perdão universal.

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     Voltando ao chão, apoiamo-nos em um comentário sobre Fiodor:
     Achando-se portador de revelações sobrenaturais, ele tenta nos catequizar com profecias místicas sobre o pecado original, a idéia de que estamos sempre em dívida para com Deus, urgindo a expiação das culpas, visando à salvação... Seus romances são povoados de anti-heróis, párias, estudantes, burocratas, oficiais, nobres, corruptos, devassos, iluminados... --- todos repletos de desespero existencial e ausência de perspectivas, tropeçando em planos diabólicos e levantando-se em arrependimentos angelicais.
     Sugerimos aos leitores a dignidade de abrir as Escrivaninhas desses honoráveis oradores e conferirem, checarem, pesarem os fatos, antes de se apartarem de nós.
     Fechamos este ensaio dirigindo-nos aos pregadores no início mencionados:
     Vossos poemas, imperfeitos em conteúdo e forma, são no entanto hiper-sinceros, confessionais, triunfantes, sinfônicos.
     Tenho infelizmente plena consciência de que vossa literatura não prevalecerá perante os séculos. Vossa fé é meritória, louvável, sublime; vossos escritos, todavia, pecam por miríades de erros gramaticais e fatigantes repetições de conteúdos alheios --- conteúdos de domínio religioso já público há décadas, séculos talvez.

 

           Notas:
    
1 - Fiódor M. Dostoiévski (1821-1881) nasceu em Moscou. Começa a escrever bem jovem, freqüenta círculos literários. Envolve-se em conspirações, é preso, condenado à morte, perdoado, porém exilado na Sibéria.
     Retorna dez anos depois a São Petersburgo, casa-se com Maria Dmitrievna, escreve e publica vários romances, todos fundamentais ao gênero humano. Morre Maria, e ele se casa de novo, em 1867, com Ana Sníktina, que administra carinhosa e firmemente suas finanças, seus compromissos editoriais e ainda acompanha seu trabalho literário. Anos depois, Fiódor morre, aos sessenta anos.

 

     2 - Uma palavra sobre a coleção abaixo, composta de quatro números:
1 - "Panorama da Literatura Inglesa - Cadernos Entrelivros nº 2, 100 págs., São Paulo, 2007.
2 - Literatura Russa";
3 - Literatura Americana; e
4 - Literatura Francesa.
     Trata-se de uma publicação das mais sérias, envolvendo só profissionais competentíssimos, conhecedores completos, absolutos e apaixonados pelo assunto. Endereço para contatos e pedidos:
www.lojaduetto.com.br 
 

     3 - Algumas obras-primas dostoievskianas (traduções direto do idioma russo):
- Recordações da casa dos mortos (Nova Alexandria, 322 págs., trad. Klara Gourianova)
- Humilhados e ofendidos (Nova Alexandria, 322 págs., trad. Klara Gourianova)
- Memórias do subsolo (Editora 34, 148 págs., trad. Boris Schnaiderman)
- Os demônios (Ed. 34, 704 págs., trad. Paulo Bezerra)
- Crime e castigo (Ed. 34, 568 págs., trad. Paulo Bezerra)
- O idiota (Ed. 34, 672 págs., trad. Paulo Bezerra)

 

  4 - Alguns testemunhos recentes sobre o Governo bolcheviche:
a) (...)

“E uma quantidade de mortes de denunciantes russos --- mais recentemente a morte da jornalista Anna Politkovskaya em Moscou, bem como o envenenamento do ex-espião Alexander Litvinenko em Londres --- mostra que a história soviética passada não está totalmente enterrada.”
(Resenha de Liesl Schiillinger)
Do livro Casa de Encontros, de Martin Amis, trad. Rubens Figueiredo. Companhia das Letras, 240, págs., R$ 39,50.
O autor, ensaísta, contista e romancista, nasceu em 1949 em Oxford, Inglaterra.
        (Revista Entrelivros nº 28, agosto de 2007, pág. 72)


b) Manchete d' O Globo: “Governo Putin interna opositora em hospício”
Larissa Arap, 48 anos, ativista russa da Frente Cívica Unida (FCU), foi obrigada pela polícia a entrar numa ambulância, dia 05 de julho, levando-a à força para um hospital psiquátrico, onde ficou internada sob escolta armada.
“Um ato de pura vingança”, denunciou ontem Yelena Vasiliyeva, chefe regional da FCU.
     Seu crime: ter criticado, num artigo, práticas violentas no tratamento de doentes mentais, denunciando maus-tratos em clínicas psiquiátricas russas.
     Os médicos responsáveis, usando um método de coerção típico da KGB soviética, injetaram drogas psicotrópicas em Larissa contra sua vontade. Em protesto, ela iniciou uma greve de fome que só interrompeu no último sábado, ao receber autorização para falar por telefone com sua filha.
     A polícia não quis comentar a denúncia. A clínica negou tudo. O diretor do hospital-fantasma fugiu.  Os telefones lá agora tocam para ninguém. (Jornal brasileiro O Globo, 31.07.2007)


c) “Ativistas seminuas são detidas em protesto contra fraudes em Moscou”
Manifestantes do grupo Femen enfrentaram frio para protestar em Moscou.
Elas condenam as supostas fraudes nas últimas eleições parlamentares.
As mulheres do Femen, que protestam seminuas, enfrentaram o frio para apoiar a oposição russa e condenar a suposta fraude nas últimas eleições parlamentares no país (Foto: Denis Sinyakov/Reuters)

Fonte:
http://g1.globo.com/mundo/noticia/2011/12/ativistas-seminuas-sao-detidas-em-protesto-contra-fraudes-em-moscou.html


d) “Ao menos 500 opositores são detidos na Rússia; governo rejeita críticas”
Protestos foram contra vitória de Vladimir Putin nas eleições legislativas.
Opositores e países do Ocidente afirmam que pleito teve irregularidades.
A polícia russa deteve nesta terça-feira (6) cerca de 500 opositores que protestavam em Moscou e em São Petersburgo contra a vitória de Vladimir Putin nas eleições legislativas, enquanto o governo rejeitava as críticas do Ocidente às eleições, consideradas irregulares.
A polícia informou que havia detido 250 pessoas na Praça Trumfalnaia, no centro da capital russa, e outras 200 em São Petersburgo, segunda maior cidade do país.
O presidente Dmitri Medvedev declarou que o sistema político russo não é um "assunto" dos ocidentais, depois que observadores da OSCE criticaram a excessiva proximidade entre o Estado russo e o partido de Vladimir Putin, vencedor das legislativas de domingo (4).
O Ministério das Relações Exteriores russo classificou de "inaceitáveis" as críticas da Casa Branca e do Departamento de Estado americano sobre o desenvolvimento dessas eleições
Os observadores da Organização para a Segurança e a Cooperação na Europa (OSCE) indicaram que foram constatadas irregularidades, inclusive "violações de urnas" nestas eleições.
O governo britânico considerou que as eleições legislativas de domingo na Rússia suscitaram "motivos de preocupação" e pediu que as supostas violações sejam investigadas "rapidamente e com transparência".
O partido Rússia Unida, de Vladimir Putin, obteve a maioria absoluta na Câmara Baixa do Parlamento (Duma), mas seu resultado foi 15 pontos mais baixo em relação às eleições de 2007.
O líder opositor Boris Nemtsov e cerca de 250 manifestantes foram detidos nesta terça em Moscou pela polícia quando protestavam contra a vitória de Putin.
"Nemtsov foi detido por dez agentes das forças antidistúrbios", declarou Olga Shorina, porta-voz daquele que foi vice-primeiro-ministro russo na presidência de Boris Yeltsin.
Dezenas de opositores foram colocados em furgões da polícia, que não interferiu nas manifestações de militantes do Rússia Unida, muito mais numerosos, reunidos do outro lado da praça.
"Os de Nachi (favoráveis ao governo) estão cercados por policiais e tocam seus tambores" para abafar os gritos dos opositores que bradam "Rússia sem Putin", disse Oleg Orlov, diretor da Memorial, ONG russa de defesa dos direitos humanos.
O blogueiro russo Alexei Navalni, detido na segunda-feira (5) durante uma manifestação opositora foi condenado nesta terça a 15 dias de prisão, indicou a agência Interfax.
Outro líder opositor, Ilia Yashin, foi condenado nesta terça-feira em Moscou a 15 dias de prisão por ter participado na segunda em uma manifestação contra a fraude nas eleições.
O Ministério russo do Interior admitiu nesta terça que havia mobilizado forças de segurança em Moscou para "garantir a segurança".
As tropas especiais "têm um único objetivo: garantir a segurança dos cidadãos", declarou o tenente Vasili Panshkov, ao ser questionado pela agência Interfax sobre a circulação de caminhões militares em Moscou.
Gorbachev vê fraude em eleição na Rússia.

Fonte:
http://g1.globo.com/mundo/noticia/2011/12/gorbatchev-pede-anulacao-das-legislativas-na-russia.html  
 

                                        Fim
 

Enviado por Jô do Recanto das Letras em 05/02/2008
Reeditado em 12/10/2013
Código do texto: T847375
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