UM CABIDE HISTÓRICO

UM CABIDE HISTÓRICO

Nelson Marzullo Tangerini

Minha ex, Tânia [nome fictício da tresloucada criatura], jogou fora um cabide de 1937 que pertenceu à minha mãe, Dinah Marzullo, quando ela trabalhou com a mãe, Antônia Marzullo, e a irmã, Dinorah Marzullo, na Companhia Teatral de Alda Garrido.

O referido cabide, de madeira e gancho de arame, à moda antiga, que foi de seu camarim, estava escrito - com sua letra: Dinah Marzullo. Ele tinha uma valor histórico e inestimável para ela – e para mim -, pois foi em 1937 que ela conheceu meu pai, Nestor Tangerini, 21 anos mais velho que ela.

Encantado, apaixonado, Nestor Tangerini escreveu poesias, trovas e um acróstico de amor para a graciosa atriz.

Eis alguns:

“A vida já quis perdê-la,

e hoje a quero prolongar;

encontrei a minha estrela

na noite to teu olhar”.

“vou vê-la... (já estou ansioso)

logo mais... Estou frenético!

- Que relógio vagaroso,

Apesar de ser elétrico!”

“Deus, artista, em seu louvor,

Imaginou, satisfeito,

No teu vulto, obra-primor,

Assim fazendo um perfeito

Hino de sonho e de amor”.

Além de ter jogado o cabide fora, Tânia, que tinha ciúmes doentios de minha falecida mãe, também jogou fora coisas minhas; inclusive, uma camiseta que mandara fazer com uma foto de Dinah – feita por mim.

Tentou, ainda, destruir uma sólida amizade entre dois irmãos.

Nós, artistas, não somos seres sobrenaturais, não viemos de um distante e especial planeta; somos criaturas que amam parentes, amigos, nossos cães ou gatos, uma vez que somos dotados de sensibilidade e delicadeza, muito embora a sensibilidade e a delicadeza não sejam atributos exclusivos dos artistas. Porque há artistas que são extremamente grosseiros, mesmo que mostrem o contrário através da mídia. Somos seres mortais, comuns, ainda que o dom artístico tenha caído como um raio na cabeça deste ou daquele ser.

Amei minha mãe porque ela amou meu pai e amou seus filhos – meus irmãos e eu.

Dinah esteve a seu lado após o desastre de ônibus de 1940, quando Nestor Tangerini perdeu o braço esquerdo. A atriz da Companhia Alda Garrido, que tinha uma promissora carreira do teatro, abandonou tudo para dar atenção ao marido mutilado e ao filho, Nirton, que acabara de nascer.

Vieram mais outros dois: Nirson e Nelson. E Dinah jamais se deixou abater, jamais deixou que Nestor perdesse o seu leme.

Foram quase 40 anos de viuvez. Orgulhava-se de Nestor Tangerini. Depois que meu pai se foi, em 1966, ela recitava para nós as poesias de meu pai. Cantava para nós a valsa Dona Felicidade, de Benedito Lacerda e Nestor Tangerini. E suspirava: “- Seu pai foi grande! E nunca foi reconhecido”.

Nunca fomos ricos. Herdei 1/3 de uma casa em Piedade, cartazes de teatro, fotografias de parentes e amigos e textos datilografados e manuscritos de meu pai; material que foi guardado com muito amor e cuidadosamente por ela.

Nos quatro meses em que ela esteve entre o hospital e a clínica geriátrica, recitava-lhe poesias de meu pai e cantava para ela. Ela me acompanhava recitando ou cantando.

Conversamos pela última vez no dia 15 de novembro de 2005. Muito mal, entre a vida e a morte no leito do Hospital Badin, na Tijuca. Meu irmão mais velho me disse que ela não reconhecia mais ninguém. Não queria acreditar. Dirigi-me a seu leito.

- Quem sou eu? - perguntei-lhe.

Baixinho, ela me respondeu:

- Nelson Marzullo Tangerini.

E prosseguiu:

- Fala comigo.

Entendi perfeitamente o que ela queria: que eu recitasse os versos de meu pai para ela. Recitei e ela me acompanhou, declamando-os baixinho.

Fiz uma pausa. E ela me disse o que jamais vou me esquecer:

- Sou apaixonada por você.

Naquela dia, à noite, ela entraria em coma para nunca mais voltar. Encontrar-se-ia com meu pai no dia 22 de outubro de 2005.

Parceiro em tantas canções, o amigo de adolescência e maturidade – e hoje companheiro no Clube dos Escritores Piracicaba -, o irmão Nelson Maia Schocair, talentoso professor, compositor e poeta, tentando minimizar a minha dor, envia-me um e-mail confortador: “Sua mãe, agora, está valsando Dona Felicidade com seu pai”.

Por que muitas mulheres não conseguem entender o amor entre mãe e filho e filho e mãe?

Em meio à tristeza, à dor, à solidão, uni-me à pessoa errada. Isto sói acontecer em todas as melhores famílias da Inglaterra e do Brasil.

Se alguém, porventura, encontrar o cabide com o nome Dinah Marzullo, por favor devolva-mo.

Nelson Marzullo Tangerini, 52 anos, é escritor, jornalista, compositor, fotógrafo e professor de Língua Portuguesa e Literatura. É membro do Clube dos Escritores Piracicaba [ clube.escritores@uol.com.br ], onde ocupa a Cadeira 073 – Nestor Tangerini.

n.tangerini@uol.com.br, tangerini@oi.com.br, nmtangerini@yahoo.com.br

Nelson Marzullo Tangerini
Enviado por Nelson Marzullo Tangerini em 05/02/2008
Código do texto: T847282